O despertar

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"Nenhuma luz divina
A tempestade silenciava
Nenhuma luz benévola brilhava
Quando desprovidos de qualquer ajuda
Morreremos cada um sozinho"

William Shakespeare

***

Acabei ficando no ambulatório com ele o dia todo. Estudamos boa parte do tempo, e a outra conversamos trivialidades, por volta das 4 horas da tarde liberaram ele, provavelmente ele iria pra casa dos pais, mas me surpreendi quando ele me acompanhou até os dormitórios e me convidou para um chá no quarto dele. Eu iria mais por curiosidade do que pela vontade de tomar chá. Sabe, imagino que no Japão isso seja comum, mas aqui geralmente os menininhos convidam as menininhas para ver filmes e se aproveitar delas, ou tomar uma cerveja e se aproveitar delas... você percebe né ,o ponto é que  chá inviabiliza a parte do "possível/evidente". Sei lá, eu acho. Nunca fui convidada pra um chá, e tampouco ouvi falar em alguém que tenha sido. Então eu fui, mais desconfiada que gato de beco, mas eu fui. O quarto dele ficava próximo da escada no mesmo andar que eu, só que do outro lado da escada. Ele dividia o quarto com um desenhista aficionado em mangá e animes, as paredes eram cheias de desenhos característicos, pregados em toda parte. Num canto quase escondido tinha o que eu chamo de cozinha quase chique improvisada. Tinha uma chapa de panini sobre uma mesinha, um pequeno microondas  de inox sobre um criado mudo e uma cafeteira elétrica sobre um frigobar vermelho. Me ofereci pra fazer o chá, dado a condição dele, mas ele me instruiu a não me mover.Ele puxou as cadeiras das escrivaninha e centralizou na frente do quarto, encheu  o reservatório da cafeteira  com água e colocou umas ervas direto na jarra e ligou. Ele ficou de joelhos  encarando a cafeteira até que toda água fervente estivesse na jarra, a retirou, serviu em dois pequenos copos de um material que não sou capaz de descrever, colocou uma pedra de gelo em cada uma e se virou na minha direção com os dois copos, sentou na cadeira ao lado e me entregou o copo. Não dissemos nenhuma palavra. Apenas bebemos o chá. Ele não  colocou açúcar no chá, mas ficou tão concentrado bebendo que eu não quis interromper aquela cena. Ele parecia tão sereno tão concentrado que até o Buda invejaria aquela serenidade. Terminei o chá e fique olhando ele terminar o chá também, eu não conheço o protocolo pra começar a falar nessas circunstâncias, então eu espero.

-pode falar se quiser.

-ah... er...

-fale de uma vez, prometo não morder.

-há quanto tempo você mora aqui ?

-Eu venho e volto pra Tóquio o tempo todo. Estou à mercê dos negócios do meu pai. Quando estão aqui eu venho, quando estão em Tóquio eu volto.

- Sente falta de lá?

- Claro, aqui as pessoas são um pouco intensas demais, a comida é  sempre pesada de mais, a língua é confusa e ninguém consegue pronunciar meu nome. Por isso que eu escolhi ser chamado de Juliano...

-Sinto muito por isso

-mas... eu aprendi a amar toda essa confusão. Falou isso tão baixo que parecia um sussurro.

- Você falou da comida, mas eu nunca vi você no refeitório...

- Desculpa se te deixei tão sem graça a ponto de mudar de assunto abruptamente.

-Não é... bem.. Ok

- Realmente te deixei sem graça. Se sente melhor em voltar a estudar ?

- sim, sim to terrivelmente pra traz , perdi um mês de aula, preciso de um milagre pra passar nas provas...

Estudamos oficialmente o dia todo, eu cheguei no meu quarto já passava das 10horas o Heitor já estava dormindo.

E foi assim por quase dois meses, eu saia antes do Heitor acordar, ia pra todas as aulas, não troquei nem se quer uma palavra com o Heitor, estudava com Juliano em todo o tempo livre, passamos a estudar todas as matérias, e ele cozinhava pra mim pra poupar  o tempo no refeitório e repassar-mos a matéria.

Eis que começa as provas, quando não estava fazendo prova estava no quarto do Juliano estudando, na semana de provas ele tinha a politica do cup noodle e café, ele só fazia cup noodle e café pra poupar tempo e estudar mais. Eu estava chegando no quarto cada vez mais tarde.

Até que no penúltimo dia de provas, eu cheguei no quarto exausta por volta das 4 e meia da manhã e o Heitor estava sentado na posição de lótus na cama  iluminado apenas pela fria e suave luz da lua que despontava pela janela, com o computador no colo e fones. Quando ele me vê ele tira os fones.

-mas que merda é essa agora? Tava transando com o ching ling até agora?!

Nunca senti tanto ódio na vida, joguei minha sacola de livros no chão, fui marchando até a janela, abri, arranquei o computador das mãos dele e joguei janela a fora. Fechei a janela. O computador fez um estrondo quando chegou no chão que acordou alguns alunos, dos dois primeiros andares. O Heitor ficou parado, com a boca aberta e olhos arregalados por quase 15 minutos.

- Não dirija a palavra a mim novamente. E segundo eu não sou uma vagabunda. Se você não controla sua raiva com as pessoas eu não vou controlar a minha. Agradeça mentalmente que foi o computador, e não você que voou pela janela.

Não É Um RomanceOnde histórias criam vida. Descubra agora