XX -Dave

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Sua cabeça doía; muito. Não quis abrir os olhos de imediato e apenas reclamou com um gemido de dor. O lugar onde batera a cabeça por duas vezes estava latejando. Pelo menos o travesseiro era macio. O cobertor era um pouco duro, mas quente o suficiente. Ele conseguia ouvir uma chaleria tremendo no fogo, prestes a apitar. O lugar cheirava a sal. Dave remexeu-se no colchão e arrastou suas costas nuas no tecido áspero. Então resolveu abrir os olhos. Tudo era um grande borrão, de início. Aos poucos, foi sentando-se, com dificuldade, e distinguindo algumas formas. Parou de tentar sentar-se de uma vez quando a cabeça latejou. Apoiou-se com um cotovelo e fez um esforço para prestar atenção ao seu redor. À sua esquerda havia apenas pedra. Uma parede irregular, cinza e com um pouco de musgo. Atrás de si também. Piscou algumas vezes. A iluminação ali não era muito ruim. A luz do sol entrava por vários pontos onde a pedra falhava e era forte o suficiente. A chaleira gritou ao mesmo tempo que uma mão tocou seu ombro.

-Thaila? –perguntou, confuso. Mas não podia ser.

Os cabelos era iguais. Roxos, liláses e com as raízes nascendo pretas. As feições estavam certas, delicadas e muito jovens. O vestido que usava era tipo mullet, roxo e dourado, e por mais simples que fosse, servia-a muito bem. Cada curva, perfeita. Mas seu toque era diferente. Não era carinhoso, sua pele não era macia. E principalmente, os olhos estavam errados. Muito errados. Não eram violetas, nem azuis. Eram pretos, e repletos de pontos prateados brilhantes e nuvens roxas. Aquela pessoa tinha o universo inteiro em seus olhos. Dave afastou-se um pouco e teve que levar a mão à cabeça mais uma vez.

-Cuidado –ela falou. A voz também não era de Thaila. –Vou pegar a água para o chá.

No momento em que ela virou o corpo, deixou de ser Thaila e tornou-se Bia. Dave encolheu-se mais um pouco no cobertor duro. Ela andou até a chaleira que estava presa por um gancho em cima do fogo de uma lareira e voltou a olhar para Dave. Os cabelos armados e pintados, a tatuagem estranha no polegar e o corpo expremido em uma saia e uma blusa justas. Mas os mesmos olhos pretos. Dave levantou-se rápido de mais e teve que segurar-se na parede por causa da tontura. Só então percebeu que não vestia nada mais do que sua cueca. A pessoa próxima a lareira apoiou a chaleira fumegante em uma bandeija de prata e riu. Voltou a transformar-se, dessa vez para Maria.

-Não se preocupe –falou. Era quase um crime ver sua mãe com os olhos e a voz de outra pessoa –Suas roupas estão secas, mas cheiram a fumaça. Vista-se e venha a mim para o chá, sim? Fará bem para sua cabeça.

Dave não teve tempo de perguntar mais nada. Ela virou-se e saiu por uma abertura, como a boca de uma caverna, e deixou-o sozinho. Não tinha muito para ver naquele lugar. Suas roupas estavam apoiadas em um sofá, ao lado da lareira. Havia um caldeirão apoiado no canto mais afastado dele e uma mesa pequena de ferro e vidro próxima a porta. Dave colocou suas roupas, relutante. Realmente cheiravam a fumaça. Ele saiu ainda ajustando a calça e decidiu que não se daria ao trabalho de fechar os botões da camisa. Não teria tempo. Tinha que apreciar o que via.

Estava numa varanda de pedra cheia de areia. Uma escada levava-o ao chão. Aquele lugar era uma ilha muito pequena. Tudo era areia, não tinha espaço para grama começar a cresecer. O mar estendia-se até onde sua visão alcançava, calmo. As ondas que chegavam ali eram suaves e também cristalinas. Palmeiras altas balançavam ao toque do vento frio e dividiam o espaço entre lápides. Dave desceu a escada de pedra e tocou a areia quente com seus pes descalços. Voltou-se para observar o lugar de onde saíra. Era uma parede rochosa que erguia-se a uns trinta metros acima do do nível do mar. No topo, a chaminé que levava a fumaça da lareira acesa era magnífica. Dela, saiam cores. Roxo, vermelho, amarelo, verde e laranja, dançando em fumaças e luzes num fenômeno muito parecido com a aurora boreal. Dave demorou-se de mais admirando aquilo. Virou-se para continuar a andar pela ilha. Podia ver a pessoa que tomara a forma de sua mãe sentando-se à uma outra mesa de ferro e vidro, na areia, com as águas molhando seus pés. Ele passava os olhos arregalados pelas lápides na areia. Não haviam identificações, e não eram muitas. Mas Dave ficou preocupado. Talvez ele fosse o próximo. Uma das lápides refletia o sol em seu rosto. Essa era prata, e bem menor do que as outras. Não havia nada escrito ali, nenhuma homenagem, foto ou data. Apenas prata brilhando com o sol. Ele andou até a mulher e sentou-se a sua frente. Ela serivou chá quente do bule de prata em uma xícara de prata e repousou-o na bandeija de prata.

Érestha -Castelo de Pedra [LIVRO 3]Onde histórias criam vida. Descubra agora