O Rei de Novembro

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Dedos moviam-se sobre sua camisa – a ponta de cada um dos dedos chocava-se contra o tecido macio como as gotas de chuvas se chocam contra um corpo inerte estirado no asfalto – e um olhar direto era ignorado por ele enquanto aquelas mãos pequenas tentavam, em vão, distraí-lo. Seus olhos azuis não a encaravam diretamente, eles tão somente refletiam o que aquela janela lhe mostrava. Lá estava ele, vidrado, observando o lado de fora. Sua mente quase se transpunha para o local, porém uma voz delicadamente afiada dilacerou o silêncio.

– Você irá mesmo falar com ele?

– Sim, aquele idiota está espalhando cartazes pela cidade!

– E por qual razão não deixas os ghouls o pegarem?

– Eles não dariam conta e você sabe disso.

– Eu poderia derrubá-lo sem dificuldades...

– Você joga sujo.

– Agora o Escorpião quer dar uma lição de honestidade?

– Não seja tola...

– O que tens em mente?

– Você sabe que não quero você se deitando com todos os nossos inimigos.

– Você fala como se eu fosse uma prostituta.

– Eu falo como se eu me importasse.

– Eu ficaria emocionada se isso fosse verdade.

– Odeio esse tom.

– Odeio estar ligada a você por causa desse joguinho estúpido e nem por isso te trato com descaso.

– Você trata todos assim.

– Nem todos.

– Eu não vejo você tratar alguém de outra forma.

Agora o silêncio parecia vingar-se dela. Talvez, por ela ter profanado a sagrada ausência de quaisquer ruídos naquele recinto. Queria responder algo. Qualquer coisa serviria naquele momento. E, mesmo assim, nenhuma palavra saiu de sua boca. Desejou contar-lhe que era ele a pessoa a quem ela tratava diferente dos demais. Nada mudaria. Aqueles olhos em tons de tristeza jamais a veriam como mulher. Ela sabia. Não podia consertá-lo. Não podia fazê-lo melhor. Talvez ele não estivesse quebrado, talvez apenas fosse o jeito dele de viver, talvez ela o entendesse, mas não importava. Ela não queria ser como ele, mas não se atreveria a contar seu segredo. Desde que selaram o pacto ela era sua confidente e ele expurgava os pecados dela. Ou, ao menos, era deste modo que, inconscientes, cuidavam um do outro. Pensou no quanto queria apenas viver sua vida sem que esta estivesse selada à dele. Pensou em tantas coisas que, quando voltou à realidade, ele já havia ido embora.

♥♥♥♥♥

O rei da água seguiu até a catedral de Santo Adolfo – lá era uma zona neutra e, portanto, não havia problema algum em um encontro entre Copas e Paus. Em qualquer outro lugar, poderia haver um confronto até a morte entre as duas facções, não ali – para trocar algumas palavras com seu oponente. Sujo de graxa, nas mãos e em parte das roupas, sentado, estava o Leão. Não tão glorioso quanto nas estórias, porém mirava um olhar imponente para as bizarras gravuras que ilustravam o teto. Pinturas demonizavam as tropas aliadas, os inimigos do eixo, e glorificavam os feitos de Santo Adolfo. O soberano de Copas tocou-lhe o ombro e o saudou.

– Eu sabia que poderia te achar aqui.

– Engraçado. Não sou um religioso.

– Não és, mas querias falar comigo.

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