Três desejos

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O odor de diesel queimado e a fumaça densa traziam torpor a qualquer um que se aproximasse da muralha de fogo – feita de pneus regados com o combustível maldito – erguida pelos estudantes da Universidade de Manaós. Um ônibus velho – ou a carcaça do que um dia fora um – chegava ao local com mais meia dúzia de feridos.

Após a transmissão da gravação feita pela resistência, a octogésima oitava ordem designou tropas sob a missão de extinguir qualquer fagulha de insubmissão, rebeldia ou resistência. Em todos os distritos, ghouls e caçadores de cabeças traziam terror às ruas. Até corriam boatos sobre a existência de rebeldes em outras cidades, mesmo nas mais longínquas. Todavia, aqui havia a particularidade da manifestação dos anjos e isto preocupava ainda mais os soberanos. Ironicamente, no passado, além das quatro donzelas que ergueram estas facções, haviam outros seres dotados de particularidades para vencer os Daemon – estas belas máquinas de guerra as quais os ingleses chamaram, em escárnio, de Devil.

Entretanto, não vamos nos prender a um passado tão remoto... Só Deus sabe o que aconteceu com aquelas crianças. Falávamos sobre esta corja de rebeldes que se autoproclamara libertadores da cidade, sobre a famigerada RESISTENCIA e sobre os feridos em sacrifício que esta deusa e a outra, LIBERDADE, exigiram em troca de seus favores. Ao longe, Temis vertia lágrimas de sangue que escorriam até sua balança quebrada, pois cometeu o pecado de voltar seus olhos para esta cidade.

Naquela noite, a senhorita Raquel Orleans esgotava cada porção de sua energia para salvar o máximo possível de jovens moribundos. Ora, seu dom era algo inacreditável. Ela pressionava as mãos sobre a ferida pútrida em uma perna ou apertava um braço necrosado e, enquanto suava sem cessar, o membro ia voltando, aos poucos, a ser como um dia fora. O dom era belo, o milagre nem tanto. A ala médica, improvisada na quadra, não era nada agradável.

O tempo gasto forçando seus poderes a consumia em demasiadas e incalculáveis proporções. Haviam remédios espalhados por toda parte, alguns deles estariam vencidos no dia seguinte ou na próxima semana. Eram uma bomba relógio. Já os calmantes, eram consumidos por Raquel como se fossem aperitivos. Estava exausta, esgotada, mas ainda restava um ultimo paciente: Cesar.

Fechou as cortinas e decidiu aproveitar o pouco de privacidade que poderiam ter ali. Puxou uma cadeira próxima ao leito e debruçou-se sobre seu peito. Precisava ouvir seu coração. Não por questões médicas, mas para ter a certeza que ele era um homem vivo.

– Estou preocupada com você – disse ela.

– Não há com o que se preocupar, querida. Ficará tudo bem.

– As coisas não são tão simples assim, Cesar. Você sabe...

– Eu sei mais do que gostaria de saber, linda.

– Estou cansada.

– Calma! Você consegue aguentar mais um pouco... Duas ou três semanas e estará tudo acabado.

– E você ainda aguenta quantos tiros? – franziu o cenho enquanto pressionava diretamente a ferida.

– Arg! – exclamou de dor, mas não achava respostas decentes para a pergunta.

– Eu não quero esta vida para nós, querido.

– Eu já disse... Ficará tudo bem... todas as noites eu peço em minhas orações que acabe logo.

– Tão devoto – pronunciou cada silaba num tom zombeteiro até enquanto revirava os olhos e controlava o riso.

– O que foi agora?

– Me diga como! Como vamos chegar em utopia da maneira que estamos vivendo?

– Você tem que confiar...

– Sabe... você fala muito sobre Deus... Claro, a liberdade pela qual lutamos vem da vocação que você tem, mas não é o que quero pra mim! Não foi o que Melpômene me prometeu...

– Você deveria apenas continuar fazendo sua parte.

– E eu não estou fazendo agora? Estou exausta!

– Ei, não precisa se exaltar... Vai acordar os outros.

– Que se dane! Você vê coisas que ninguém mais vê... pode saber quando morreremos, mas não enxerga como estou me sentindo! Você não percebe o quanto eu o amo! Não vê como eu me preocupo com você! Quem dirá saber o que penso sobre mim...

– As coisas não funcionam de maneira tão fácil como eu faço parecer... É difícil pra mim também...

– E você acha que eu não sei? Eu sou a única que te conhece de verdade, Cesar. Eu te conheço, sei seu potencial e suas fraquezas. Eu coroei você, esqueceu?

– E o que você quer de mim?

– O que eu espero? Quer mesmo saber o que eu quero?

– Céus, mulher! Fale logo de uma vez por todas!

– Eu quero dinheiro, poder, glória! E o que mais eu poderia querer ao aceitar ser "A Rainha"?

– Meu Deus! Você só pode estar enlouquecendo!

– Aleluia! – subiu em cima da maca e ficou sobre ele, segurando-o fortemente – Eu vou conseguir... Dinheiro... E vou tomar todo seu poder e glória, meu Rei. Estes são meus três desejos. E o que você quer?

– Que Deus tenha piedade de nossas almas – puxou-a pelos cabelos após fixar a mão em sua nuca. Trouxe aquele rosto cheio de esplendor para perto do seu. Olhou-a nos olhos e não precisou lhe dizer mais nada.

– Todos nós pecamos, querido.

Os lábios se chocavam como o mar ao encontrar-se com os arrecifes, as mãos adentravam por dentro das roupas tão rápidas quanto fagulhas tendem a tornar-se um incêndio em local propício. O suor destilava a paixão que só os jovens têm. O vai e vem dos corpos quase que acompanhava o piscar das lâmpadas que falhavam naquela noite fatídica. Cada beijo era um adeus e suas línguas almejavam coletar ao máximo o sabor único que o outro possuía. Cada brado ou gemido dado naquela noite – ignorados pelos que tentavam dormir – valeria por todos os "eu te amo" não que por alguma razão não haviam sido ditos. Seus corações sincronizaram-se numa intensa e melancólica sinfonia. As lágrimas tinham um sabor amor amargo, mas os sorrisos enchiam o momento de doce ternura.No alvorecer, ela já não estava mais lá. Ele a viu partir, porém fingiu dormir, pois odiava despedidas e, também, não quis estragar o adeus perfeito que deram um ao outro por longas três horas.

MANÁOSOnde histórias criam vida. Descubra agora