Prólogo

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Assoviando uma música pouco conhecida, o homem andava a passos lentos, saboreando o leve calor do amanhecer que entrava pela parede de vidro e recaia sobre o peito desnudo. A camisa preta repousava no ombro fazendo sombra sobre o relógio de grife, enquanto ele descia a grande escadaria no interior do casarão. Coçando a cicatriz que separava ao meio a sobrancelha, ele parou frente a uma porta. Seus pensamentos limitavam-se a execução do plano.

O homem puxou o celular do bolso traseiro e, ainda assoviando, deslizou o polegar sobre a tela, deixando que um sorriso peculiar rasgasse seu rosto, interrompendo o assovio. O silêncio caiu sobre a casa. Habilidoso, seu dedo percorreu a pequena tela, clicando em menu, utilitários e por fim em gravador de voz.

— Dia um. Início do experimento. A cobaia continua desacordada – disse, encarando o monitor que ladeava a porta.

O dedo soltou o gravador e correu para a lateral do aparelho, pressionando-o. A tela escureceu e o celular voltou para o bolso. A mão foi novamente a cicatriz, ele sorriu para a porta, enquanto girava a maçaneta. Bateu no interruptor ao avançar porta adentro, fazendo uma forte luz fluorescente vazar pela abertura, antes que fechasse a porta atrás de si.

Ele retomou o assovio assim que a porta bateu a suas costas. A acústica do longo corredor permitiu ouvir com mais nitidez o som dos sapatos de solado amadeirado ecoando compassadamente, e se esmorecendo à medida que desciam os degraus. Mentalmente, ele continuou repassando o plano como um mantra, enquanto deslizava os dedos pela parede.

*****

Ela acordou com a visão turva, e as luzes fortes da sala dificultaram ainda mais o foco, mesmo assim, vasculhou o local tentando absorver algo que a norteasse, mas apenas enxergou o borrão do que imaginou ser uma espécie de espuma de colchão nas paredes. Seus ouvidos, mesmo abafados pela aparente ressaca, foram seus maiores aliados, a fazendo distinguir o som insistente de um ar condicionado e aos poucos, outros sons foram surgindo, como os de metal rangendo e estática.

Como em uma pós-noitada, os membros da mulher formigavam e a cabeça girava. Concentrando-se mais, ela buscou pela última lembrança, mas seu próprio ser estava em dilema, já que parte de si sugeria o sofá de sua casa, enquanto a mais sensata dizia bar da faculdade. Christini apenas implorou para si mesma que não tivesse ido para casa de nenhum desconhecido na noite passada, e torceu para que estivesse na casa de algum amigo.

Novos sons aos poucos lhe chegavam aos ouvidos. Uma música pouco conhecida, mas que lhe era familiar, ressoava em ecos distantes trajando um assovio. Um toc-toc crescente fazia com que sua cabeça latejasse, lembrando-lhe dos passos de testemunhas de Jeová caminhando pelos corredores do prédio aos domingos, geralmente para acordar festeiros ressacados. Ela geralmente era um dos que eram acordados, costumava dizer isso com propriedade.

Uma porta abriu a sua frente, permitindo que visse um vulto corpulento de homem. A pele branca dele refletia um pouco da luz do local e o insistente assovio do homem penetrava como agulhas nos ouvidos da mulher, a cabeça já latejante aparentava querer explodir. Ela viu o assoviador pendurar uma camisa em um chapeleiro ao lado da porta. "Pelo amor de Deus... Pare de assoviar...", pensava a mulher enquanto piscava os olhos em busca de boa resolução.

Vagarosamente, o homem conquistou terreno aproximando-se da mulher, mas parou a meio caminho, ela o viu coçar a sobrancelha e apoiar as mãos na cintura.

— Olá, Tíni! – disse o homem, quase sussurando – Espero muito que ainda se lembre de mim.

A voz do homem não entonava emoção alguma, mas o timbre causou arrepios em Christini, não pela falta de emoção contida nele, mas pela familiaridade. Ela conhecia aquela voz, mas nunca imaginou que voltaria a ouvi-la.

UMA NOVA CHANCE - O Velho RyanOnde histórias criam vida. Descubra agora