V

46 11 33
                                    

O balançar da velha Caravan harmonizava perfeitamente com o silêncio em seu interior, ao passo que levava os quatro novamente para casa. Agora sentada no banco traseiro, ela encarava as nuances de verde e cinza que se projetavam a beira da Raposo Tavares que, em agradecimento, lhe devolvia uma série de reflexões sobre seu dia com Vinícius.

"Um dia um tanto conturbado para o primeiro encontro", era o que Luna pensava. Não tinha prévio conhecimento sobre as nuances da esquizofrenia e, pelo jeito, teria que aprender, seja com Jorge, pesquisando ou por tentativa e erro. O dia de hoje a ensinara a não subestimar as consequências de seus atos quando o assunto era o Menino.

— Pai, o que a Pâmela disse, enquanto eu tava no banheiro?

A menina, tirada de seu devaneio, voltou os olhos para Jean que, por sua vez encarava o pai do banco do carona.

— Disse que ele tá bem. O susto fez mais mal pro meu coração do que pro corpo dele – disse, em uma risada amigável.

O menino meneou a cabeça e voltou os olhos para a estrada. Por algum motivo a mente de Luna migrou para os cabelos loiros que escondiam os olhos azuis da médica. Os profundos olhos azuis, bondosos demais para serem reais.

— Víni... – Perguntou. – Tem uma coisa que eu não entendi...

Como vindo de outro mundo o menino encarou a pequena nipônica ao seu lado. Os dedos inquietos mordiscando a pele nas costas da mão, mas o olhar estava centrado, diferente dos olhos negros perdidos que vira no hospital.

— O quê?

— Se ela é sua psiquiatra...

A menina gesticulou com as mãos, buscando a palavra ou termo que pudesse elucidar a duvida.

— Como ela agiu como médica, clinica geral? – Sugeriu, Vinícius.

— Isso! – A menina disse com um leve sorriso.

O escalador de telhados fixou os olhos nos de Luna e, por um breve momento, ela sentiu como se ele fosse além de sua iris, infiltrando-se em sua pupila e devorando sua alma. A garota ainda não havia notado como o olhar daquele garoto era diferente. O tipo de olhar que pessoas velhas tem, um olhar calmo, incisivo, ancião.

— Antes de se formar em psiquiatria – disse –, a doutora Pâmela foi minha pediatra. Eu era bem pequeno quando ela identificou os primeiros sintomas da esquizofrenia. – Pareceu refletir por um momento. – A única coisa meio chata, é a intimidade que ela tem com a minha família... Me chama de macaquinho desde que eu caí pela primeira vez do telhado. – Sorriu.

— Um apelido muito coerente, na minha opinião! – Zombou, Jorge.

Luna riu com o comentário do velho, sem deixar de encarar os olhos calmos do menino, que a fizeram arquear um sorriso admirado. Ambos balançavam no banco traseiro da velha Caravan, e Vinícius continuava beliscando as costas da mão. Os olhos carinhosos de Jorge bisbilhotavam pelo retrovisor, enquanto seu rosto carregava um sorriso bobo.

— Sabe, Víni... – disse –, eu fico meio assim de falar sobre sua condição... – Olhou para baixo. – Mas você trata de uma forma tão natural que me deixa ainda mais sem jeito. – Voltou a encará-lo.

O menino sorriu. Aquele gesto pequeno desencadeou um choque elétrico pelo corpo da pequena nipônica. Mais uma vez, seu peito estava em chamas com pouquíssimo combustível.

O lado racional de Luna atribuía o sentimento recorrente a carência causada pelo luto e aos seis meses sem contato físico, mas o lado emocional atribuía o sentimento ao sorriso daquele Garoto e ao mistério que aqueles olhos anciões deixavam no ar.

UMA NOVA CHANCE - O Velho RyanOnde histórias criam vida. Descubra agora