I

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O vibrar do celular sobre o criado mudo fez Samuel sentar rápido de mais. Ele sentiu a escuridão em torno girar. O braço da prostituta ao seu lado fez um baque oco quando escorregou de seu peito para o colchão, e ela soltou um breve resmungo antes de virar para o outro lado e voltar a roncar. Mais rápido do que gostaria, o homem de peso elevado girou a cabeça em direção ao aparelho, um breve refluxo lhe subiu pelo esôfago. Ele levou alguns segundos para entender o que estava acontecendo, em parte por conta do sono, em parte por conta da ressaca de natal. Samuel dirigiu a mão para a luz quadrada que girava num canto do quarto escuro, serrando os olhos para o numero não registrado. Ele deslizou o polegar sobre o circulo verde, levou o celular até o lado do rosto e ralhou:

— Jesus Cristo, são uma da madrugada!

— Jesus? Sério? – Gargalhou, a voz do outro lado. – Sei que sou incrível e tudo mais, mas não é pra tanto, meu velho.

— Quem fala?

A voz de Samuel soou irritada.

— O seu amigão da vizinhança, o Homem Aranha!

As sobrancelhas de Samuel se levantaram ao mesmo tempo em que um dos dois queixos colou no pescoço. Só uma pessoa poderia ser dona daquele humor ácido.

— Nossa, cara! Fazem o que? Uns oito anos? – disse, ainda estranhando a própria voz rouca.

— Quase onze na verdade. Eu andei meio ocupado. – a voz entoava desanimo.

— Caralho, onze anos? A gente está meio velho. – Gargalhou.

— Pelo amor de Deus! Que horas são? – A prostituta, ralhou ao lado de Samuel.

O gordo pôs a mão livre sobre o fone.

— Uma, e eu fechei com você até as seis, então não enche.

Samuel sentiu a mulher se mexer sobre a cama, desconfortável com seu comentário.

— Tá com uma puta, néh?

— E desde quando você me julga?

O homem gargalhou do outro lado

— Não é um julgamento, é uma constatação. Mas me deixa perguntar... Tem compromisso pra amanhã?

— Não, cara. Você tá no Brasil?

— Sim, e fico muito feliz por você ainda morar na mesma casa e manter o mesmo número de celular.

— Você me conhece, sou sistemático pra porra.

— Claro que conheço. – A voz soou estranha. – Você ainda frequenta o Shamrock?

— Aquele em Porto Alegre? Sim!

— Beleza, me encontra lá as onze, amanhã. Dardos e whisky por minha conta.

— Olha só! O cara tem grana agora! – Gargalhou.

— As onze, Samuca! Não vá se atrasar.

O telefone ficou mudo. Samuel tirou o aparelho da lateral do rosto e o encarou por um breve momento antes de apertar o botão lateral e desativar a luz. Ele voltou a deitar e fitou a escuridão que ainda girava. "Algumas coisas nunca mudam", pensou, lembrando de como seu amigo se divertia desligando o telefone na sua cara quando eram mais jovens. Os lábios do homem gordo esboçaram um tímido sorriso infantil, enquanto seus olhos buscavam o teto em meio à penumbra. Pouco a pouco, Samuel foi se entregando novamente ao sono, deixando que a embriagues e a nostalgia o guiasse.

Ryan devolveu o telefone publico para o gancho, retirou o distorçor de áudio do pescoço e o deixou escorregar para dentro da mala que trazia consigo. Com um sorriso escarnado no rosto, ele caminhou em direção ao seu carro emprestado, um Galaxie 1965, acomodando a maleta no banco do passageiro assim que sentou atrás do volante. Do quebra sol, ele retirou os novos documentos e os guardou no bolso do paletó. Seu novo nome era Matheus de Oliveira Alcântara.

UMA NOVA CHANCE - O Velho RyanOnde histórias criam vida. Descubra agora