II

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A escuridão em torno de Christini aguçava o olfato e audição, ela não se lembrava de dormir e a noção de tempo fugia-lhe da memória, as lágrimas ainda caiam como uma fina garoa. Além do cheiro de urina, um pútrido cheiro de vômito permeava o lugar, embrulhando-lhe o estômago.

Marcus jazia desmaiado em algum lugar naquela sala, ela ouviu o momento em que o vômito saiu-lhe da boca. Gritou seu nome inúmeras vezes, mas o poço de inconsciência onde seu marido se encontrava era profundo demais para que pudesse ouvi-la.

Sentindo-se exausta e impotente, foi pouco a pouco, com auxílio do som das gotas, se forçando a abraçar o sono.

No parque do Ibirapuera, onde uma leve brisa atiçava-lhe os cabelos, ela se viu sentada frente ao lago, enquanto batia suavemente os pés na água, observando os pássaros e as crianças, sentindo o sol quente afagar-lhe a face.

— Chris! Vem aqui me dar uma mão com a toalha.

Ela olhou para trás e viu Marcus embaixo de uma falsa seringueira com as mãos cheias de sacolas. Um sorriso tímido surgiu no rosto da mulher enquanto ela levantava e iniciava a breve caminhada até a árvore. Atrapalhado, Marcus retirava de uma das sacolas uma toalha de praia. Antes de alcançar o marido ela ouviu uma gota cair no lago, e um arrepio de mau presságio tocou-lhe a espinha, fazendo-a virar para encarar as águas.

— Marcus, acho que vai chover – disse, encarando a garoa.

— Acho que a tempestade já chegou, Tini.

Ela ouviu uma voz familiar vindo da direção de Marcus. Christini virou-se depressa e se deparou com um amontoado de sacolas salpicadas de sangue, uma toalha sendo levada pelo vento e um homenzarrão sem camisa, em pé, segurando pelos cabelos a cabeça de Marcus, que de olhos revirados e estranhamente arregalados, gotejava sangue de seu maxilar frouxo, produzindo um som áspero sobre a grama. Estranhamente, o corpo de Marcus não estava ali.

O homem avançou lentamente, pendulando o escalpo de Marcus para frente e para trás. Christini sentiu como se seus pés houvessem afundado meio metro no solo, e de fato estavam, quando olhou para baixo a terra já havia coberto seus joelhos. Quando moveu a cabeça na direção do assassino, ela pode ver olhos castanhos completamente vazios, muito diferente dos que ela estava acostumada a encarar. Viu também surgir detrás do homem um segundo sol no céu. A imagem do homem gradativamente se tornou uma massa sombria.

"Nants' ingonyama, bakithi, baba"

Christini despertou com um pulo, sentindo novamente a profusão de cheiros que lhe embrulhava o estomago. A música alta preenchia qualquer lacuna da escuridão.

"Sithi hu 'ngonyama, ingonyama

Ngonyama nengwe bo!"

Ela girou a cabeça varrendo o lugar de um lado ao outro, piscando freneticamente, esperando que os olhos se adaptassem ao breu.

"Nants' ingonyama, bakithi babo.

Sizo nqo'!"

— Bom dia, Tini! – Berrou a voz coberta de estática. – Sei que deve estar exausta, mas não durma agora... Nossa aventura acabou de começar e eu sei o quanto você ama aventuras.

— Santo Deus... Ele tá nos vigiando?! – disse, baixinho.

Christini sentiu um nó na garganta e por impulso tentou dobrar o braço dormente. O traseiro começava a doer, a dor subia pela coluna e terminava na base da nuca como uma alfinetada.

A luz reacendeu, os olhos da mulher lacrimejaram, ela forçou a cabeça para baixo para proteger-se da luz, mas isso apenas intensificou a dor no pescoço. Tudo naquele lugar parecia ser oriundo de um pesadelo alucinante, causado por uma erva ruim. A ficha de Christini teimava em se manter alta. Aquilo tudo não poderia ser verdade. Ela precisava acreditar nisso, mas a voz de seu marido a empurrou de volta para o poço de merda onde havia se metido

UMA NOVA CHANCE - O Velho RyanOnde histórias criam vida. Descubra agora