Kindermoord

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O vento açoitava as folhas das árvores do bosque.

Uma jovem encontrava-se parada diante da clareira, encarando o céu nublado e acinzentado. Tinha as mãos enfiadas dentro dos bolsos do casaco felpudo, balançando as pernas ansiosamente. Sobre a cabeça, trazia um capuz azul-marinho, que ocultava boa parte de seu rosto, expondo apenas suas madeixas louras.

Rayane Blink ergueu o queixo levemente, lançando um olhar tristonho em direção ao horizonte.

Sabia que era errado.

Mas não havia outra solução.

Era a única forma de salvar Bryan. Prometera aquilo à Mariah, e teria de fazer aquilo, agora que sabia o que estava prestes a acontecer.

Quisera um dia ter algum tipo de coragem, para ousar desafiar a decisão dos Comensais da Morte. Mas, mesmo que a tivesse, jamais conseguiria fazer algo para impedir aquilo. Seria impossível.

Odiava-se por participar daquilo. Porém, não teria nenhuma opção.

- Blink!

Girou os calcanhares, sobressaltando-se. Vislumbrou um homem atarracado aproximar-se dela, com a expressão irritada.

- Rookwood – cumprimentou-o timidamente, abraçando o próprio corpo.

- Está quase pronto – ele franziu a testa – Blackhole mandou lhe entregar isso.

Deu-lhe na mão um frasco pequeno, de conteúdo vermelho-escuro.

- O que é?

- Para o garoto – o Comensal ergueu a sobrancelha – a maldição será definida pela idade do sacrifício – indicou o frasco – faça o bebê tomar isso, e ele não será afetado.

Rayane assentiu, guardando o frasco no bolso da jaqueta.

- Será esta noite? - perguntou, receosa.

Viu o bruxo concordar com a cabeça, espreitando-a de modo intimidante.

- Assim que for feito, teremos dez minutos. Aparate na casa dela, deixe-o lá e volte. Iniciaremos a mobilização assim que terminar – Rookwood suspirou – venha. Já está para começar.

Quis dizer que não queria ver aquilo. No entanto, o medo de represália falou mais forte, lançando Rayane no encalço do Comensal encapuzado.

Depois de cinco anos de procura, finalmente haviam a fórmula arcaica da maldição mais hedionda e antiga da história bruxa.

O kindermoord – a morte dos primogênitos.

Envolvia tanta magia negra, e um ritual tão profano, que só ocorrera uma única vez na história da Humanidade, há mais de cinco mil anos.

Por fim, a Serpente decidira trazê-la de volta – mesmo que em menor escala.

Ambos se aproximaram da parte mais oculta do bosque, onde vários outros Comensais da Morte já se encontravam reunidos.

A garota retraiu-se, atônita, ao focalizar o altar retangular de pedra, erguido no centro da roda.

Atada por cordas, debatendo-se aflitivamente, encontrava-se uma garotinha. Não tinha mais de seis anos de idade.

A jovem sacudiu a cabeça, horrorizada, vendo a criança soluçar angustiadamente, com lágrimas escorrendo pelo pequeno rosto. Amordaçada, a menina não podia fazer com que ouvissem seus gritos.

- Não... não... Rookwood...

- Se deixar a clareira, entenderemos que desistiu – rosnou o bruxo – e ele terá o mesmo destino dos demais.

- Não... não posso... não posso ver... - ofegou Rayane, desolada.

- Então não veja – sibilou Rookwood - mas tampouco fuja.

Choramingando, a moça reergueu o olhar, vendo Andrew Blackhole ladear o altar, munido com um punhal serrilhado em uma das mãos.

Num movimento rápido, Blackhole passou o punhal em sua própria mão aberta, sem demonstrar qualquer expressão de dor. Baixando a mão que acabara de cortar, levou o indicador da outra ao ferimento, recolhendo no dedo um pouco do sangue que se empoçara na palma.

Imóvel e atordoada, Blink apenas observou-o deslizar o dedo ensanguentado sobre a testa da menina, desenhando, sobre sua pele, uma cruz ansata.

A garotinha continuou a se contorcer, apavorada, fitando o punhal acima dela, com absoluto terror no olhar.

- Com o derramamento deste sangue, vingaremos nosso antigo senhor. Com esta maldição, golpearemos nossos inimigos. Com este ritual, exaltaremos a Serpente.

Acovardando-se, sentindo os guinchos da menina lhe atingirem como facas, Rayane ocultou os olhos com as mãos, enquanto ouvia uma arrepiante fórmula mágica, ditada pelo braço direito da Serpente.

- Per sanguinem innocentem hostis semen maledictum.

O ar ao redor pareceu condensar-se, fazendo o corpo de Rayane estremecer.

Houve um grito infantil abafado.

O som de ferro traspassando a carne.

E então, o silêncio.

- Está feito! – bradou Andrew.

Os Comensais da Morte exclamaram em sincronia.

Ainda fremindo, a jovem baixou as mãos, recusando-se a olhar outra vez para o altar, temendo que as lágrimas começassem a escorrer.

Manteve o foco nas estrias avermelhadas que deslizavam pela pedra, sentindo vontade de vomitar.

- Pronto – o bruxo falou – pode ir. Vá até Mariah. Você não tem muito tempo.

Rayane recuou, voltando a colocar seu capuz.

Sem perder mais tempo, por fim permitindo-se chorar, finalmente aparatou.

Mariah sobressaltou-se quando a amiga surgiu em seu quarto.

- Rayane!

O rosto da garota estava vermelho e úmido.

- Tome – adiantou-se, dando á mulher o frasco que Rockwood lhe entregara – dê a ele. Está quase na hora.

A bruxa segurou um soluço, baixando a cabeça, abrindo uma pequena manta. Dentro dela, adormecido, um recém-nascido ressonava suavemente.

Ela hesitou ao desarrolhar o frasco, encarando Rayane.

- Ray... – sua expressão destilava uma terrível tristeza – isso podia salva-las... eu... isso é horrível...

A moça balançou a cabeça em firme negação, abalada.

- Não há nada que possamos fazer agora, Mary – ajoelhou-se defronte ao bebê – temos que proteger Bryan.

Viu Mariah engolir em seco, apertando o frasco nas mãos pálidas.

Por fim, a amiga levou os dedos á boca da criança, abrindo-a levemente, e despejando o conteúdo do frasco em sua garganta.

O pequeno Bryan tossiu, remexendo-se por um momento.

E então, dando um longo suspiro, continuou a dormir.

- Deu certo? Ele... ele está protegido?

Rayane se reergueu, indo até a janela do quarto.

- Só o tempo dirá – choramingou, aflita – tem que funcionar. Não aceitei ser recrutada por nada. Não traí minha irmã por nada... eles fizeram o Voto Perpétuo, e não poderão voltar atrás.

Ao longe, vislumbrou uma nuvem negra tomar forma no céu, girando em espiral, tremeluzindo de modo ameaçador. Percebeu pequenos fragmentos nebulosos começarem á baixar, relampejando em direção aos vilarejos próximos.

A maldição fora concluída.

O kindermoord estava prestes a começar.

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