Caminho na escuridão¹. I

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Quando papai chegou, à tardinha, eu já estava pronta para partir. Mamãe tinha feito a janta. Preferi não comer. Os dois estavam sem conversar comigo. Ficariam na sala de jantar, vigiam o que comiam enquanto os olhos estavam pregados na televisão e os ouvidos nos movimentos que eu fazia pela casa arrumando minhas coisas. Resolvi entrar no jogo deles e não falar nada. Mesmo porque o momento era de ação, não de diálogos mórbidos e repetitivos. Passei por eles, dei um mero tchau e ganhei a rua. Naquele momento me sentia feito um pássaro sem asas, ganhando terras novas e me descobrindo como um ser em crescimento. Eu, uma garota de dezessete anos que começava a sentir o gosto da vida; amargo gosto de vida.
Cortei a cidade com longas caminhadas, depois ônibus e metrô. Tudo muito demorado, distante; Mais distante que meus sentimentos, que pareciam se evaporar. Comprei a passagem e entrei no ônibus, que me levaria perto dos meus pesadelos, demônios e tudo mais que se podia imaginar. Sentei-me numa poltrona qualquer. O ônibus estava quase vazio. Um homem, uma mulher e uma criança com seus três anos ocupavam os bancos da frente comiam um biscoito e sujavão o chão com os pedaços que voavam de suas bocas .
Havia também um casal de namorados. Românticos, preferiram se recolher lá no fundo, Escondido entre poltronas. algumas senhoras idosas e alguns homens solitários ocuparam seus lugares e finalmente o ônibus partiu. Aos poucos as luzes da cidade foram rareando, sumindo, deixando para trás a afobação e a loucura do dia a dia numa grande cidade.
Breu. Já era quase meia-noite. No silêncio de morte tomava conta da gente. de vez em quando se ouvia o instalados beijos do casal lá no fundo. às vezes, também, a criança lá na frente resmungava, mas logo voltava a dormir.
De repente, comecei a achar que o que eu estava fazendo era loucura. Voltar a Ilha, sem um propósito Aparentemente, apenas para me livrar dos diabinhos que não me deixavam dormir. E isso já fazia tempo. Quem sabe não acabaria me acostumando com Eles? Ou talvez,aos poucos, com ajuda do Renan, meu analista, eu conseguiria expulsa-los da minha vida?
A medida que o ônibus ganhava estrada, comecei a duvidar dessa minha necessidade premente de voltar. Deu vontade de gritar para o motorista parar o ônibus ali mesmo para que eu descesse e fizesse o caminho de volta para casa. Só que agora era tarde . Briguei com meus pais, enfrentei meu médico, mostrando a todos a necessidade de fazer esta viagem. Seria louca se voltasse assim sem mais nem menos. Não. Agora não Podia. O caminho está a minha frente. Se voltasse seria a pura covardia.
Estava sonolenta quando o ônibus parou. Havia tomado um comprimido a seco mesmo e tentava dormir. Quando pensei que ia conseguir, o movimento dos passageiros descendo me despertou. Então levantei e Saí. Não queria ficar sozinha Naquele ônibus.
Fiquei parada na entrada do restaurante Quase vazio. Não tinha fome nem sede, ao contrário dos outros que comiam e bebiam como Famintos. Até o casal de namorados se deleitava diante de um sanduíche e refrigerante que me dava Náusea.
Sai dali e atravessei a rua. Fiquei de frente para o Rio de Águas Verdes que naquele momento era apenas negras. E ali eu ouvia risos Gritos e gemidos. Pareciam sair do fundo da água. Malditos! nem ali aqueles demônios me deixaram em paz. Bati a mão na cabeça, quase Gritei, virei para o rio onde só se ouvia o barulho da água correndo e os gritos e gemidos. Olhei para os lados para centificar-me de que não havia ninguém ao lado e falei, quase sussurrando:

- Por que vocês não vão embora? Por que não me deixam em paz? Aproveitem a Correnteza do Rio e sumam. Malditos demônios!

A Calçada esburacadas deixava Pedras pelo chão. Enchi as mãos com as mais pesadas e pontiagudos e comecei a atira-las nas águas. Queria atingir um por um dos diabinhos que estáva lá dentro rindo de mim.
Pensei em voltar para o ônibus, mas senti alguém segurar minha perna.

-Você?
- Cadê o meu biscoito?
Era Nana. Não podia acreditar que ela estava ali. Passaram-se quase dois meses. Foram tantos problemas que me esqueci dela por completo. Estava um pouco mais crescida, O vestido era o mesmo, só que agora um pouco mais curto e o sorriso ainda mais doce, mas angelical.

- Eu não trouxe. Esqueci.
- Você esqueceu de mim?
- Acho que sim. Mas agora eu prometo que não esqueço mais. Quando eu voltar, juro que vou trazer uma coisa bem gostosa para você. pega esse dinheiro - Falei, tirando do bolso uma nota toda amassada. - Vai comprar sua bolacha.

Ela sorriu e, antes de atravessar a rua para ir ao restaurante, passou a mão na minha barriga, agora de leve, sobre a blusa mesmo.
Olhei e vi que o ônibus se preparava para partir. Peguei mais algumas pedras e joguei as no Rio. Depois limpei as mãos na calça e corri na vã esperançosa de que os diabinhos ficassem ali.
A viagem prosseguiu. Ia chover. Chuva forte, daquela que lava a alma. Notei pela agitação do mar quando o ônibus pegou a estrada que passava pelas praias. Podiam se ver espumas das ondas bravas E o escurecer da noite rareando sem mostrar o sol. Olhei o relógio. Logo ia Amanhecer de vez. Queria dormir, não conseguia. Estava ansiosa em Voltar, tentava reviver um momento na minha vida que eu não conseguia esquecer.
     Meu estômago roncava. Lembrei que nao tinha jantado. Abri a bolsa e peguei um pacote de bolachas. Joguei uma na boca. Arrependi-me. O silêncio era tanto naquele momento que o barulho da bolacha em contato com a minha boca mais parecia um terremoto. Sorvi devagar a bolacha enquanto guardava o pacote. Melhor mesmo era esperar para quando eu chegasse ao destino.
     E cheguei de madrugada. Chovia e ventava. O ônibus me deixou perto da balsa. Só eu desci. Os outros passageiros ainda prosseguiriam a viagem. Não havia uma alma viva. A balsa não estava funcionando. A chuva não permitia. Peguei minhas coisas e saí correndo procurando um lugar onde pudesse me proteger. Não encontrei. Estava tudo fechado. Naquele momento achei que fosse o único ser acordado no mundo. Fiquei com raiva, vontade de mandar tudo para o inferno. Que ideia mais doida, viajar à noite! Não podia ter esperado o dia seguinte, viajar durante o dia e encontrar a balsa funcionando com o sol brilhando?
     Não teve jeito. Fiquei no canto da guarita esperando a balsa. A chuva era forte que batia em mim como se quisesse me arrancar o pedaço. À medida que minha roupa molhada, foi que comecei a achar bom ficar daquele jeito. Comecei a me sentir parte daquela tormenta. Literalmente uma tormenta. As ruas estavam alagadas. O mar cuspia espuma. De vez em quando eu olhava em sua direção para ver se nao tinha engolido a ilha. Se pudesse, iria até lá a nado. Mais nunca fui louca. Então fiquei ali mesmo, torcendo para que a chuva parasse.

Os caminhos de CarlaOnde histórias criam vida. Descubra agora