π Capítulo3

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Pareceria loucura caso eu te dissesse que acabei não gostando dele? Eu tenho que admitir que ele tinha seu charme, loiro, médio, com olhos castanhos escuros, e dava para notar que por baixo do uniforme, ele escondia um corpo musculoso, mas sem exagero. Ou como May diria: Definitivamente não era o meu tipo. Mas não foi só isso que me fez não gostar dele. Sabe quando você olha para a pessoa e simplesmente não vai com a cara dela? Foi exatamente o que aconteceu. E você quer saber o que eu fiz? Isso mesmo, eu deixei a bebida onde estava e fui embora. Simples assim, acho que foi até fácil. Eu culpo minha ansiedade e timidez naturais por isso. Depois disso, eu fui para casa, naturalmente estressada e cansada de mais um dia normal. O que me faltava agora era um sonho para completar a desgraça, e foi o que aconteceu.

***

Eu estava em uma espécie de pedra, dividida por vários rios a sua volta, cada um com uma cor diferente, com o arco iris, só que com mais cores.
Eu nem sei porque, mas eu sentia a pedra. Ela era áspera, e meus joelhos doíam só de encostar nela, assim com meus pés de pisar ali. Era como se ela estivesse me cozinhando por fora e por dentro. Eu sabia que isso não era possível, mas eu me sentia cada vez mais quente, de um jeito ruim. Olhando os rios, eles pareciam pacíficos como o oceano, mas também tristes. De algum modo, eu podia sentir a tristeza deles, cada um mais triste que o outro.
Estranhamente, eu não conseguia mover um músculo, muito menos controlar o sonho(o que eu nunca consegui, mas isso não importa). E de repente, eu os ouvia gritarem de dor , tanto que explodiram jogando uma água colorida para cima, que por alguma macumba, não me acertava. E então a dor parou. Não a deles, a minha. Eu parei de queimar, como se a água tivesse apagado o fogo, mas eu percebi que estava presa por ela. Para todos lados que eu olhasse, havia água, e eu sabia que não importava qual delas eu escolhesse para tentar passar, eu sentiria ainda mais a dor deles, mesmo não sabendo quem eram. Mas eu não sentia medo, e eu não estou brincando. Eu sei o que é ter tanto medo de algo que você não consegue se mover, mas não era assim que eu me sentia. Eu tinha vontade de me enfiar no meio daqueles rios, e ficar ali para sempre. Sabia que estava sonhando, que nada daquilo era possível, mas eu também não conseguia acordar. Se eu não me mexia, muito menos conseguia acordar, o que eu deveria fazer? Eu também não sei. Olhei novamente para os rios, me perguntando se eles me dariam a resposta,mas não parecia estar funcionando. Quando eu finalmente consegui mexer alguma coisa, me joguei com tudo no rio mais próximo, o verde, e ele na jogou para cima, como um gêiser. E eu fui subindo até passar pelo teto daquele lugar a cair, totalmente sem controle de onde. Mas eu via o chão chegando cada vez mais perto, e eu tinha certeza que ia bater de cara nele.

***

Acordei com um salto, ainda sentindo que ia cair e me estatelar no chão daquele lugar. Mas eu fiquei aliviada, ao olhar a minha volta e ver meu quarto, com as minhas coisas exatamente onde eu deixei. Eu me toquei por inteiro, para ter certeza que não estava faltando nenhuma parte.
No sonho eu não estava com medo, mas agora eu gelava cada vez que me lembrava da experiência, o que acontecia uma vez a cada 20 minutos. Eu respirava com dificuldade, como se tivesse acabado de me afogar. O relógio marcava 8:00, mais cedo que eu costumo dormir. No calendário, era dia 30 de outubro, faltando um dia para o aniversário de Morte do meu pai, e eu não gosto de comemorar a data, mas sempre me lembro quando ela está perto.
Até aí, tudo bem. Só que quando eu dormi, era dia 28. Como posso ter dormido dois dias inteiros e ainda me sentir cansada? Sei que ninguém percebeu, porque eu não sou importante. May talvez tenha percebido, mas ela mora muito longe para vir na minha casa.
Quando eu ouvi a minha porta bater, eu dei outro pulo. Me levantei e fui ver se tinha alguém, mas era só chuva. E isso me acalmou um pouco. Eu amo chuva no meio da noite. Subi a sacada, e aproveitei um pouco. Me chame de criança, se quiser, eu não me importo.A chuva caí quando e onde você quiser, você só tem que decidir se foge ou aproveita. Eu penso que quando crescemos, nós não podemos deixar a criança que existia dentro de cada um de nós morrer. Porque então estaremos deixando uma parte nossa para trás. Sendo assim, eu as vezes, tento ressuscitar a minha. Nesse caso, é na chuva.
Eu sinto cada gota que pinga do céu tocar no meu corpo, como quando tomo banho. Elas são refrescantes e ao mesmo tempo, quentes como se fosse um chuveiro elétrico, incapaz de decidir a própria temperatura. A minha também não parecia muito normal. Não sei, se era efeito da chuva ou do sonho, mas eu sentia meu corpo queimar. Eu olhei para os meus braços e me vi realmente pegando fogo. Não era uma febre, eu estava sendo carbonizada. Se você quiser imaginar como é, coloque a sua cabeça dentro de um forno ligado e aumente a temperatura no máximo, agora multiplique isso por 20, e você estará perto de sentir o que eu estava sentindo. Eu nunca me senti tão quente na minha vida. Me perguntava até onde eu poderia aguentar aquilo.
Quanto tempo levaria para eu queimar por completo? Sinceramente, eu já estava pronta para pegar uma arma, me matar e acabar com aquele sofrimento de uma vez. Minha vida não me importava mais, nem as coisas boas e ruins que fiz nela. Eu só queria poder ter me despedido de May, antes de virar pó. E eu sei que pode parecer estranho eu estar queimando na chuva, você vai achar mais estranho quando eu disser que explodi. Um clarão começou a sair do meu peito, e quando eu percebi, eu já não estava mais na Terra.

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