π Capítulo 1

7 1 0
                                    

Eu estava indo para o trabalho, já que não posso ficar parada. A única coisa boa disso é que não preciso usar uniforme, o que também não ajuda muito.
V

eja bem, nós não temos leggings, seja qualquer peça, foram queimados por causa do perigo que representavam. Durante alguns anos todos recebiam uma calça legg ,do tamanho certo para servir o ano todo, até que os presos aprenderam a se matar com as leggs. Eles ficavam batendo na parede num prego até rasgar, de onde continuavam fazendo o, até fazendo a ficar em tiras até ter o tamanho de uma corda. Então subiam até a janela e arrancavam um tijolo solto, amarravam nele e jogavam pela janela. Do lado de fora dela, há cachorros com uma força um pouco fora do comum, que puxam os tijolos até onde quiserem, e enquanto isso a pessoa vai subindo por ter amarrado o pescoço a outra ponta da corda. Ao chegar na janela a pessoa tinha duas opções: ou desamarrar o nó e cair de 3 metros, ou deixar o cachorro puxar e bater-lô contra a parede até ter uma concussão. Sim, é bem maluco mas nunca falhou e então o governo descobriu esse padrão em todos e pararam de produzir qualquer coisa que seja legging. Mesmo assim ainda tem as regras de como se vestir: as pernas, bumbum e peito devem permanecer cobertos. É assim que qualquer um me reconhece na rua. Estou sempre vestindo coturnos, meia calça, shorts e camiseta, e as vezes quando está frio, uma jaqueta.

Todos na cidade acharam seu jeito de não usar legging, com calças de malha, vestidos, shorts ou saias,etc. Ninguém reclama disso mas eu tenho certeza que não estão contentes. Quando você anda pela rua é capaz de ver em suas caras que não estão felizes em obedecer esse governo, que faz de tudo para manter a população num número estabelecido por eles, se passarmos desse número eles matam quantos forem necessários para igualar tudo. É um regime de terror e nós temos que fingir concordar com isso. Eles tem um registro de tudo o que faço, e caso eu não obedecer a programação, levo alguma punição.
Então agora eu tenho que estar no trabalho junto com May, era para ela ter me dado carona até lá, mas ela nem se deu ao trabalho de aparecer, assim eu fui andando. Seria mais fácil se fosse perto de casa, mas é parte da lei, nenhum funcionário pode trabalhar perto de onde vive para que não roube para si mesmo e esconda na casa por isso eu tenho que andar 1 km para ir e voltar, um atraso, choque. O choque vem de um rastreador injetado em meu braço a partir do momento em que comecei a andar,desde então eles controlam meu tempo seja a hora de trabalhar a hora de dormir, que são apenas 6. Eu nunca gostei dessas regras,motivo pelo qual levei tantos choques, e levei tantos que não me incomodam mais e mesmo assim eu continuo seguindo a programação. As vezes, eu gosto de fugir um pouco da rotina, então faço algo fora. Quase nunca é a mesma coisa, um dia eu invado uma casa,no outro tomo um sorvete. Sempre uma coisa diferente da outra,eu não gosto de ser igual a ninguém,é bom ser diferente. Ou imprevisível, como minha irmã costuma dizer. Uma vez já fingi ser ela, não foi legal, pelo menos eu penso assim. Naquele dia, ela me disse que quando eu fosse fazer alguma coisa devia fazer direito. É por isso que hoje decidi fazer algo radical. Parei de andar para ir ao trabalho, virei a rua à minha esquerda,começando a correr e torcendo para que as câmeras não me vissem. Eu corria e corria até achar meu lugar favorito do mundo: uma casa branca abandonada no final da rua. O único lugar onde eu nunca tinha visto que não havia câmeras ou regras, afinal era o meu lugar. Nem mesmo minha irmã chegava a saber da existência dele, era o meu maior segredo, aquele que eu esconderia com a minha vida , e era o que eu fazia.

***

Antes de continuar você tem que entender que eu tenho um gosto peculiar por pedras de qualquer tipo desde diamantes a pedras de asfalto. Eu falo sério, uma vez fiz May voltar duas quadras apenas para pegar uma dessas, ela disse que eu era observadora demais, mas eu simplesmente não consegui evitar sorrir.
Nós somos irmãs, mas não há semelhança entre nós. Eu sou morena e baixinha, May é alta e ruiva. May fala muito, já eu não abro a boca. Talvez nossos rostos tenham feições parecidas, mas é só isso que me faz igual a ela. Distinguir nos costuma ser fácil.
Enfim, é isso que faço naquele lugar. Tenho uma caixinha cheia de pedras, cada uma com seu nome e personalidade própria. As paredes cinzas preenchidas por meus vários desenhos e esboços. Uma mesa cheia de cadernos onde escrevo meus poemas, minhas histórias ou frases aleatórias que aparecem em minha cabeça. Queria poder compartilhar meu lugar com mais alguém, mas o problema é confiar em alguém. May é a pessoa que mais confio, e mesmo assim nunca consegui mostrar esse lugar para ela. Ela nunca entenderia, o bem que estar aqui me faz,o quanto me sinto feliz de ler, reler e inventar minhas histórias. Histórias sobre coisas que aconteceram comigo, com May, de gente que eu nem conheço, chego a inventar pessoas para essas histórias. Mas eu nunca consegui inventar uma boa para explicar o que aconteceu com o governo, nem com meu pai.

***

Não tem um jeito fácil de dizer isso, mas toda vez que me perguntam como ele morreu, eu digo que foi assassinado e até não descobriram quem o matou, o que de certo modo é verdade. Mas não totalmente.
Meu pai nunca foi a melhor pessoa do mundo, nunca foi carinhoso conosco. Quando May nasceu, papai e mamãe ainda eram um casal feliz, um ano depois eles se divorciaram e foi perguntado a minha com que ela queria ficar, e , eu não sei por qual motivo ela escolheu meu pai. Um ano depois, segundo ela, meu pai apareceu em casa com uma nova namorada, nove meses depois eu nasci, e minha mãe morreu no parto. Aquilo foi o bastante para convencer-lo de que ele tinha filhas amaldiçoadas, porque as duas mulheres de sua vida haviam deixado apenas as meninas para ele criar, e isso o enlouqueceu. Ele arrumou um trabalho durante a semana, passou a deixar as filhas com babás e voltar apenas em suas folgas, trazendo uma nova peguete com ele, com quem ele transação e bebia durante a folga inteira, sem dar um pingo de atenção para as duas filhas, que cresciam pensando cada vez mais que moravam com um sádico. No dia seguinte, ele despedia a babá, mandava a peguete embora e chicoteava as filhas,dizendo que a culpa era delas.
Com o passar dos anos eu e ela juntamos cicatrizes o suficiente para decidirmos fugir de casa, mas ele sempre nos achava, e quando chega vamos em casa, ele nos batia cada vez mais forte, rendendo ainda mais cicatrizes. Até hoje ainda sentimos o dor de cada golpe, cada batida.
Porém houve uma vez depois de termos,por algum milagre ,ficar mais de um mês escondidas, ele estava muito bravo, tão bravo que quebrou uma cadeira em minhas costas e outra nas de May, assim ambas apagamos.
Eu não sei o que aconteceu depois, simplesmente não consigo me lembrar. Tudo o que me lembro é que acordei depois encharcada com sangue , meu pai imóvel asomando acima do meu corpo e despontando do peito dele, havia uma adaga ensanguentada indo direto ao seu coração. E então ele virou cinzas me deixando com a arma do crime na mão e uma história inacreditável para contar.

***

Eu tenho milhares de teorias sobre o que aconteceu, a maioria delas querendo me dizer que eu não o matei, enquanto a minoria tentava aceitar isso. E quanto mais penso nisso, mais confusa eu fico. Eu tento viver cada dia, me convencendo disso, mas meu pessimismo não ajuda. May é a otimista, não eu. É como dizem , o mais velho fica com o melhor, pelo menos no nosso caso.
Desde aquele dia, passei a chamar a mim mesma de Heyna, na esperança de tentar me redimir pelo o que fiz a meu pai. Até hoje, não parece ter dado certo.Depois daquele dia nunca mais voltamos lá, acho que nem faço mais ideia de onde é. Eu apenas segui em frente, era o mínimo que podia fazer. Hoje, alguns anos depois, eu não sou mais a mesma. Com tanto tempo, provavelmente ninguém será. Talvez não dê para perceber a mudança, mas você sente algo faltando. Como se ao perdê-lo, eu também perderia uma parte minha. Mas se eu o matei, então o que eu perdi? Parte de mim ou minha humanidade? Ou quem sabe ,os dois.

Once In A LifetimeOnde histórias criam vida. Descubra agora