"Decifra-me, mas não me conclua, eu posso te surpreender". - Clarice Lispector
É isso que dá falar demais. Mas que eu precisava de alguém para ligar para a polícia caso eu não voltasse, eu precisava. Do que eu não precisava era de um certo loiro ladrão de pautas para me acompanhar. Encontrar aquelas denúncias que duas mulheres diferentes fizeram para a prefeitura da cidade em forma de mensagem no site da mesma deu um trabalhão danado e se o motivo dos túmulos estarem sendo violados for mesmo para tráfico de ossos isso vai me render, no mínimo: a capa, uma matéria de três páginas e mais minha reportagem na página inicial do portal da nossa revista por muito e muito tempo. Seria um escândalo uma coisa assim em uma cidade cheia de gente rica e aparentemente sem defeitos, então não vai ser André que vai estragar minhas intenções de dar uma desmascarada nesse lugar.
Ele se aproveita da minha total falta de ação ao vê-lo praticamente invadir meu carro para ser ágil e dar partida no mesmo, mas bem em tempo eu o atrapalho segurando seu braço e tirando-o de perto da ignição.
- Não, você não vai. - minha voz soa bem confiante.
- Ah, eu vou sim. - a dele também. Merda.
- Você não vai. - repito com incredulidade quase procurando uma forma de traduzir de uma maneira que ele entenda - Nós não somos uma equipe, nós somos rivais de revista, lembra? Rivalidade? Você da "Porto" e eu da "Tome Nota"? - vou perguntando enquanto observo sua expressão cínica estampada diretamente naquele rosto e seus olhos azuis me encarando ainda com um misto de divertimento e irritação - É só imaginar o futebol... Um é o Vasco, o outro o Flamengo. O Corinthians e o Palmeiras, Inter e Grêmio, Barcelona e Real Madrid, Celtic e Rangers...
- Celtic e Rangers? - me interrompe com susto - Caramba, você foi longe...
- Qual o problema dos dois? Eles são grandes rivais!
Que culpa eu tenho de ter sido criada com três irmãos mais velhos que amavam tudo que envolvesse futebol?
- Isso não importa quando os dois são uma droga.
- Eles não são uma droga. - opino e o repreendo - E não vou discutir futebol escocês com você.
- Muito obrigado! - respira ironicamente aliviado - É um favor que me faz.
Desgraçado irritante.
- A questão é que você não pode ir. Não estou disposta a dividir créditos de uma matéria com você. Aliás, só de pensar no que meus chefes fariam se eu aparecesse com uma matéria que acompanhasse seu nome, já tenho medo.
- A questão é... - volta seu corpo na direção do meu e solta um sorrisinho que contrasta com seu semblante de ordem e tira por um momento meu fôlego - Que eu vou, queira você ou não.
Minha cara de emburrada provavelmente deve se assemelhar ao de uma criança de cinco anos e, mais uma vez, ele tira proveito disso pra voltar sua atenção novamente ao carro e, agora sim, sair em direção ao temido destino.
- Nós somos estudantes de medicina. - me dou por vencida e retomo o controle avisando, ainda séria - estamos interessados em um crânio.
A cara espantada que ele me lança é digna de risos ( e mesmo assim o filho da mãe continua inacreditavelmente sexy, ainda vou descobrir como consegue), mas me seguro e continuo dando as instruções.
- Que foi? Já houveram casos assim em Moçambique e até em Santos, sabia? E a venda no geral era para estudantes de medicina ou para rituais de magia negra. E nem pensar em fechar negócio senão vamos estar compactuando com o crime. - ordeno.