" O que somos hoje é apenas consequências do nosso passado."
Teodora havia retornado da farmácia. Ainda era noite, umas nove horas mais ou menos. Era uma noite de lua cheia, o céu estava todo estrelado e era possível se escutar todos os sons e barulhos típicos da noite no campo, como as cigarras, os sapos e uivos dos lobos. Junto de Isabel, aqueceram um pouco de água numa chaleira no fogão de lenha mesmo, deram um banho na criança que naquela altura já estava todo sujo. Trocaram a fralda, o vestiram com um limpo e quente macacão comprado por Teodora. Em seguida o alimentaram com o leite em pó. Assim finalmente a criança calou-se e dormia como uma pedra, chegaram até cantar cantigas de ninar para o garoto.
Isabel sentia-se aliviada sem o choro do neném. Ai como era bom aquele silêncio. Aproveitou-se daquele ambiente tranquilo, para conversar com Teodora. Lhe contou sobre toda a história do plano com Matias. Assim como todos que ouviam aquilo ficou estarrecida. Pensava no que levava uma pessoa a fazer isso com a própria irmã:
- Porque todo esse ódio gratuito pela sua irmã Isabel?
- Não é ódio gratuito não, eu tenho motivos pra isso Teodora, pode acreditar.
- E quais motivos são esses? O que ela te fez?
- Nasceu. Só isso. Ela nasceu.
- Que horror. Vocês nunca foram amigas? Nunca se trataram como irmã?
- Antes na infância, ainda quando éramos pequena, a Bárbara era tudo pra mim, a minha melhor amiga, a minha heroína. Mas depois com o passar do tempo, conforme a gente vai crescendo, a gente vai vendo como são as coisas. Tudo era Bárbara. Bárbara era a mais inteligente, a mais educada, a mais boazinha, um anjo. E eu era a mais bagunçeira, a mais burra, a ruim, a malvada, tava sempre de castigo.
- Aposto que isso são invenções da sua cabeça. Aposto que seus pais te tratavam da mesma forma.
- Não é coisa da minha cabeça não. Eu podia ter treze anos mas eu percebia, percebia tudo. Meu pai nem tanto, mas minha mãe não sabia nem disfarçar. A Bárbara era a sua preferida sim.
- Isso é coisa de filho, os pais sempre amam suas crias da mesma forma.
- Mas você pensa que eu deixava barato, que eu me fazia de coitadinha, você tá muito enganada. Eu infernizava a vida daquela cretina.
- O que você fazia?
- Na escola, lá na escola eu me vingava. Inventava que ela falou mal das outras crianças, só pra eles irem tirar satisfação com ela. Arranjava namoradinhos pra ela, essas coisas.
- E você acha isso bonito.
- Há, há, há. Era engraçado. Teve uma vez que eu revelei pra todo mundo que ela fazia xixi na cama, a escola inteira começou a chamar ela de Maria mijona, foi muito engraçado. Mas não foi invenção minha não, ela fez xixi na cama até os treze anos. Esse apelido ficou com ela até o terceiro ano.
- Quanta maldade.
- Maldade nada. Era a minha vingança. Eu só queria ser amada do jeito que eu era, sem comparações. Aquelas malditas comparações com a minha irmãzinha gêmea me faziam me sentir um lixo, um nada. Ela era a melhor em tudo.
- Nada justifica essas suas atitudes.
- Justifica sim. Depois quando a gente chegou no ensino médio ela veio com aquela história de que queria ser professorinha. Ai, como aquilo me irritava.
- Normal ué. Você também não tinha sonhos.
- Tinha. Claro que tinha.
- E quais eram os seus sonhos?
- Eu queria ser rica, ter poder, ser importante. Mandar e desmandar em todo mundo. Andar de carro chique, viajar de avião, usar roupas caras, morar numa mansão. Esses eram os meus sonhos.
- Isso eu sei. Sempre foi gananciosa.
- Mas graças a Deus eu realizei essas minhas vontades, como já te contei me casei com um milionário.
- E isso te fez feliz. Você foi feliz possuindo tudo isso?
- Claro que fui. Fui muito feliz. Mas infelizmente tudo se acabou e eu voltei pra essa vidinha miserável de sempre.
- Então você resolveu ocupar o lugar da sua irmã, achando que poderia recuperar essa riqueza perdida?
- Talvez possa ser isso.
- Isabel você está aí tentando justificar toda essa maldade contra sua irmã, mas o que vejo é que essa sua ganância desmedida junto com essa inveja que você sente por ela é que te levaram a fazer isso. Mas ainda há tempo para resolver tudo isso, ainda há tempo, se entregue, é o melhor a se fazer. Não se arrepende de nada?
- Não vou me entregar coisa nenhuma, agora vou até o fim. Só me arrependo de uma coisa. De não ter jogado tudo pro ar antes e ter fugido com o Danilo, aquele homem que não sai da minha cabeça. Só disso que me arrependo. E qual é a sua Teodora? Essa altura do campeonato vai querer me dá lição de moral.
- Então se entrega, se acerta com esse moço e vai ser feliz. Não é lição de moral. É só um conselho.
- Você tá muito boazinha pro meu gosto. Nunca foi de dar conselhos.
- Sabe aquela história de que a gente apronta, apronta e quando fica mais velho a gente quer dar de coitadinho. Então acho que estou vivendo essa fase. A fase me arrependendo de todos os meus erros.
- Tu deve ter aprontando até nessa vida também não. Me conta um pouco de tudo que você já viveu.
- Eu? Só tenho lamúrias pra te contar.
- Não importa. Conte, quero saber. Como foi sua infância?
- Foi triste. Era eu mais três irmãos, uma menina e dois meninos. Nossos pais bebiam muito, viviam no bar e quando chegavam eram só brigas, e sempre sobrava pra nós. Apanhamos muito, éramos muito mal tratados. Então eu a mais velha resolvi que iríamos fugir de casa. Arrumamos as malas e fugimos. Foram anos e anos morando na rua, dependendo da boa vontade dos outros e como nem todo dia todo mundo tá de boa vontade a gente sofreu muito.
- Triste. E cadê esses seus irmãos?
- Quando ainda estávamos na rua, a assistente social veio e nos levou pra um abrigo, mas como eu não nasci pra viver presa, eu fugi. Fugi, prometi a meus irmãos que voltaria para buscá-los, mas não consegui cumprir. E nunca mais os vi. Djanira, Antônio e Maurício. Como me fazem falta.
Nesse momento Teodora desaba e começa a chorar sofridamente.
- Difícil né minha amiga. Pode chorar. Colocar tudo pra fora. -Diz Isabel.
Após um tempo em silêncio, Teodora retorna a contar seu passado:
- Após a fuga tinha que dá um jeito de sobreviver. Fui trabalhar numa casa de família, fui morar nos fundos da mansão e quando achei que tudo ia melhorar, engano meu. Família ruim, de gente podre, gente suja, me fizeram sofrer muito, tinha que comer restos como se eu fosse um porco.
- E você não fazia nada?
- Fazer o quê? Era aquilo ou a rua. E também tinha a esperança de retornar pra buscar meus irmãos.
- Entendo.
- Depois já maior fui demitida depois que meu patrão tentou me estrupar. Aquela mulher dele desgraçada sabia que eu era a vítima, mas ficou do lado do canalha.
- Que filha da mãe.
- Pra você ver. Mas uma vez tava na rua. Fui trabalhar num bordel. Lá conheci um ricaço, um ricaço, pelo qual me apaixonei perdidamente. No entanto foi só mais um desgraçado na minha vida. Me engravidou, não quis assumir e me obrigou a abortar. Depois disso a dona do bordel me obrigou a fazer uma laqueadura, eliminando todas as chances de eu engravidar novamente. Por isso nunca tive filhos. Mas aquilo foi bom pra mim, ali depois daquela cirurgia jurei pra mim mesma que nunca mais deixaria ninguém me humilhar novamente. Fui embora daquele bordel, me casei com um comerciante, depois que ele morreu, fundei meu próprio bordel. Me tornei uma mulher forte, guerreira que lutou contra tudo e contra todos pra ter um pouco de paz.
- Surpreendente sua história Teodora. Chego a me arrepiar.
- É. O papo está bom, mas temos que dormir. Amanhã você tem que resolver toda essa situação, e pelo visto o dia vai ser grande.
- Também já vou me deitar.
Antes Isabel olhou para Gabriel, a criança ainda dormia, e sozinha previa um dia intenso e de fortes emoções:
- Amanhã será o grande dia.
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A UVA PODRE
RomanceDuas irmãs. A mesma face. Diferentes personalidades. Bárbara é a típica mocinha, batalhadora e sonhadora. O oposto de Isabel, sua irmã. Uma mulher gananciosa, que sabe muito bem onde quer chegar. Para a família diz trabalhar como garçonete em uma bo...