Talvez fosse somente uma mera impressão de Christine, mas poderia jurar de pés juntos que Marcos não era só um simples e pacato jardineiro. Ele parecia ter cultura e falava como tal, todavia poderia ser só a convivência com as pessoas de alto nível, afinal, realmente trabalhou ali sua vida inteira. Era comum ter adquirido algumas manias da própria família que tampouco conheceu.
Tomando o chá, ela acabou queimando a língua e fez uma careta. A máscara saiu de seu devido lugar e mostrou uma pequena parte de sua marca. Marcos logo percebeu que ela havia ficado um tanto envergonhada, talvez amedrontada, entendia o quanto ela tinha medo de ser vista e até respeitava isso, então fingiu não ver. Mesmo assim, curioso, mordeu sua língua para não fazer perguntas que iriam deixar a moça desconfortável.
— Você não parece só um jardineiro, se me permite comentar... — Ela ergueu a sobrancelha, abrindo um sorriso de canto — Fez faculdade de quê? — Perguntou, pondo a xícara sobre a bancada da cozinha. O observava cheia de curiosidade.
— Não, na verdade eu trabalho aqui por opção... — Comentou — Eu fiz faculdade de Artes e um curso de música, mas não terminei uma segunda faculdade por causa do tempo — explicou, parecendo até mesmo um pouco triste com a revelação —, de Direito — Sorriu Marcos, ainda parecendo infeliz.
— Artes e música não se misturam muito com Direito. — Christine moveu a cabeça, percebendo que seus olhos estavam há muito vidrados nos de Marcos, logo mudando a direção de seu olhar para seus próprios pés — Parecem ser coisas bem opostas ao final das contas. — Marcos, que parecia estar bem à vontade próximo da moça mascarada, continuava a encará-la fulminante, percebendo que ela havia mudado a direção de seu olhar.
— Bom, são mesmo. — Riu-se — Basicamente Arte é um tipo de liberdade enquanto o Direito se resume a regras. — Tentou soar engraçado, mas talvez não tivesse conseguido.
— Sem regras não haveria nada, é um fato. — Infelizmente ela se manteve séria no decorrer da conversa — Até na arte existem regras. — Ergueu novamente os olhos.
— Mas são regras flexíveis que sempre são alteradas por alguém criativo. — Apontou o dedo para ela, mirando-a de cima abaixo, mostrando-lhe um sorriso oportunista.
— Touché, meu caro. — Ela ergueu os braços e deu-se por vencida na discussão, finalmente abrindo para Marcos mais um de seus inebriantes sorrisos.
Ele também abriu um sorriso e levou uma de suas mãos para frente, iria tocar na mão dela, porém percebeu que isso não seria boa ideia, já que ela era extremamente preservada, reservada, tímida e apesar de inteligente e encantadora, não se dava muito bem com outros seres humanos, talvez não se considerasse humana o suficiente para isso.
— É casada? — Perguntou, olhando o chá que já estava quase no fim, seguido de um olhar para ela, que ficou calada por um momento antes de responder, o que pareceu uma eternidade.
A senhorita mascarada ergueu o olhar, observando o mofo que se criava no teto. Iria tentar fugir do assunto, porém, apesar de tudo que havia vivido em sua pouca existência, se sentia bastante confortável próxima dele, do jardineiro, filho da empregada e alguém tão invisível para outros.
— Não tive essa oportunidade. — As mãos dela passeavam lentamente pela bancada em que estava recostada — Digamos que as oportunidades não batem à minha porta sempre que eu quero. — Hesitou em prosseguir, contudo continuou — E eu nunca quis isso... não para mim. — Contou, finalmente, um de seus segredos.
— Difícil de crer que ninguém aparece para você! — Ele usou ambas as mãos para mirá-la de cima abaixo — Deve estar de brincadeira... — Rindo, percebeu que a feição dela não mudou em nada.
— Eu não sou de brincar, Marcos. — Ergueu uma sobrancelha, cruzando lentamente os braços ao encarar a figura loira — Eu sou uma pessoa séria e profissional.
— Notei isso quando vi você tocar. — A cara de Marcos murchou — Como descobriu que tinha o dom para tocar e cantar? — E, de repente, voltou à seriedade natural — És boa com os dedos, se me permite dizer. — Ele era muito mais risonho do que Christine, nitidamente.
— Minha mãe era apaixonada por música e me ensinou a tocar violino, piano e tantos outros instrumentos de corda e sopro. — Suspirou alegre, eram suas melhores memórias de infância — Aos dezesseis, quando criei coragem suficiente para ir à público com minha... — hesitou — deformidade — novo suspiro surgiu e ela finalmente descruzou os braços —, pedi para estudar música. — Olhou para cima como se estivesse vendo um flashback de sua vida — Ela aceitou e cá estou, lecionando música há mais de dez anos. — Um sorriso involuntário brotou em Christine, que guardava a memória de sua mãe como a mais preciosa de todas as jóias que poderia ter em sua vida.
— Que interessante — queria fazer mais perguntas, coisa que não poderia ter feito jovem e que ainda estavam vagando em sua mente —, mas me diga: deformidade? — Fez-se de tonto e pareceu até mesmo não saber de nada — Pensei que só fosse uma mulher misteriosa com um dos olhos amarelos — um pequeno hiato —, vindo da heterocromia congênita... Mas...
Ela o interrompeu, pigarreando e se desencostando do balcão com um pouco de barulho, alvoroçada. Passou as mãos pela saia lápis e decidiu ir embora. Ela não gostava do assunto, ou de qualquer conversa que a levasse para o intermédio de sua doença.
— Eu nasci com um problema que não pode ser alterado, Marcos. — A voz dela parecia diferente, mais séria do que antes — Usar uma máscara em pleno século 21 por desejo próprio não é bem o que eu diria de estilo. — Bateu a mão espalmada no balcão, porém não houve som algum nesse gesto — Existem condições bem claras que não me permitem aparecer em público sem ela. — Encarou Marcos com aqueles enormes olhos, penetrantes — Agora... se me der licença, preciso ir para casa. — Ela não parecia mais amigável como antes e seguiu seu caminho para fora, recolhendo o casaco e também sua bolsa, sem interromper a caminhada compassada e rápida. Não se despediu.
Marcos, aquele pobre coitado, ficou na cozinha se culpando por ter falado demais, sem ação. Logo agora que estava se aproximando de Christine, que estava ganhando uma nova chance de conhecê-la sem usar-se do mesmo erro!
Não deveria ter tocado em um assunto tão delicado, logo agora que a conversa estava fluindo com a misteriosa dama mascarada.
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Christine - Ela É A Fera [COMPLETO]
ChickLit"A mais bela não é aquela que tem beleza, Christine. A mais bela é a que possui essência, aquela que têm uma alma que vibra, que espalha a luz da simplicidade e da humildade por onde quer que vá. Você, meu amor, é a pessoa mais bela que já pude conh...