Marcelo entrou em casa batendo a porta com força. Foi ao banheiro, lavou o rosto, enxugou-o e respirou fundo, tentando se acalmar. Precisava controlar a emoção. Não podia deixar-se dominar por aquele impulso destrutivo. Afinal, ele era uma pessoa equilibrada, estava acostumado a servir de exemplo para os outros.
No trabalho, quando alguém se irritava ou discutia, os colegas diziam:
- Como você é descontrolado! Olhe para o Marcelo. Por que não como ele?
Em casa, sempre que havia uma discussão entre os pais ou os três irmãos. Marcelo era logo chamado para apaziguar.
- Não vale a pena se irritar - dizia ele com voz calma. - Não vai resolver mesmo!
Falava com tanta certeza que os ânimos logo se acalmavam.
Até Lúcia, irmã de seu amigo Gérson, procurava-o para pedir conselhos quando brigava com o namorado, e ele a orientava para que tudo voltasse a ficar bem.
Marcelo gostava muito de ser bondoso. Quando alguém lhe pedia um favor, por mais difícil que fosse, ele se esforçava para realizá-lo, ainda que para isso precisasse deixar de lado alguma coisa pessoal que considerasse importante.
Achava bom ouvir dizer:
- Obrigado, Marcelo! Como você é bom! Obrigado por você existir!
Ele meneava a cabeça negando, mas seus olhos brilhavam de prazer. Ele era bom! As pessoas o amavam!
Olhou-se no espelho: seu rosto estava vermelho, os olhos congestionados. Lembrou-se de uma conversa que ouvira tempos atrás:
- Vamos falar com Marcelo. Ele faz!
- Acha que ele topa?
- Claro! É só dizer que há alguém doente na família e pronto! Aproveite, porque sei que ele recebeu ontem.
- E se ele desconfiar?
- Ele nunca pensa mal de ninguém! Elogie bastante, comova-se, diga-lhe quando ele é bom. Garanto que ele nem vai querer saber detalhes. Dá logo o dinheiro.
Apesar de ter ouvido tudo, quando o amigo veio pedir, ele não teve jeito de dizer "não". Deu o dinheiro!
Marcelo abriu a torneira e lavou novamente o rosto. Precisava esfriar a cabeça. As pessoas eram maldosas, incapazes de compreender um gesto de bondade. Pagavam o bem com o mal.
Suspirou tentando resignar-se. Reconhecia que sempre fora rodeado de pessoas ingratas. Justamente aquelas pelas quais mais se sacrificara eram as que o tratavam com desprezo, indiferença e até certa agressividade. Em casa ele sempre ficava por último em tudo. A necessidade dos outros vinha primeiro. O importante era que os outros ficassem felizes.
Nos feriados, o plantão da empresa precisava ser atendido e havia um rodízio. Mas, fosse quem fosse designado, quem acabava ficando era sempre Marcelo. Seja no Natal, no último dia do ano, até no seu aniversário. É que, se alguém lhe pedia para o substituir, ele se colocava no lugar do companheiro e resolvia sacrificar-se. Era pessoa de sentimentos!
Acreditava que precisava fazer o bem sem esperar recompensa. Esse era seu valor, seu alimento. Dentro do sacrifício, sentia-se bem. Admirava-se de sua bondade. Sentia-se valorizado, cumprindo com seu dever.
Mas aquele dia tinha sido a gota d'água: havia visto sua namorada do cinema de braço dado com outro rapaz. À tarde ela lhe telefonara avisando que tinha apanhado um resfriado e que não poderia sair com ele naquela noite. Ele acreditara.
Porém Gérson, amigo e companheiro de trabalho, fora procurá-lo em casa para contar-lhe que estava sendo enganado. Sem querer acreditar, Marcelo acompanhou o amigo até o cinema e a viu sair trocando carinho com Valdo.
Sentiu vontade de aparecer na frente deles, gritar sua raiva e esmurrá-los. Mas ficou parado, enquanto o amigo irritado o incitava a reagir:
- E então? Não vai dar uns tapas nesses dois? Ele sabe que ela é sua namorada! Estão rindo de você! Vai deixar isso barato? Vamos lá, que eu ajudo!
Mas Marcelo parecia chumbado ao chão. Ficou olhando quando eles passaram. Mirtes olhou para ele e fingiu que não o conhecia. Foi-se embora, pendurada no braço do rapaz, conversando animadamente.
Quando o casal entrou no carro estacionado perto e se foi, Gérson não se conteve:
- Você é muito frouxo! Como pode deixar passar uma coisa dessas? Todo mundo fala mesmo que você é um bunda-mole! Não tem vergonha nessa cara? Amanhã eles vão espalhar que você é um trouxa! E eu vou confirmar!
Marcelo saiu correndo e foi para casa. Queria bater naqueles dois. E também em Gérson e em quem aparecesse em sua frente. Mas conteve-se.
Respirou fundo e tentou esquecer aquela cena horrível. Mas não consegui. Deitou-se e não pôde dormir. As palavras do amigo voltavam à sua mente e ele se remexia na cama inquieto.
Na manhã seguinte, quase perdeu a hora do trabalho. Levantou-se, lavou-se e vestiu-se rapidamente. Quando se sentou à mesa do café, Iolanda disse assustada:
- O que foi, meu filho? O que você comeu ontem? Seu rosto está todo pipocado, vermelho.
Marcelo sentiu ligeira tontura. Passou a mão no rosto.
- Está coçando. Quase não dormi esta noite.
- Parece intoxicação. É melhor ir ao médico.
- É. Eu vou. Não estou me sentindo bem mesmo.
- O que você comeu ontem? Eu vivo avisando. Você comentou essas porcarias nas lanchonetes e nem sabem como foram feitas. Só pode dar nisso.
Marcelo levantou-se e foi olhar -se no espelho. Seu rosto estava ligeiramente inchado e cheio de pintinhas vermelhas. Concluiu que ir ao médico seria mesmo uma boa solução. Àquela hora Gérson já deveria ter contado aos colegas o que acontecera na véspera.
Telefonou ao médico e marcou a consulta. No final das contas aquele adoecimento viera a calhar. Se tivesse sorte, poderia ficar alguns dias em casa e quando voltasse ao trabalho seus colegas já teriam esquecido o desagradável incidente da noite anterior.
Nem pensou em ligar para a namorada. Para quê? Sentia-se envergonhado pela cena que presenciara. Nunca mais iria vê-la. Isso bastaria para que ela entendesse que ele não aceitava traição.
Gostava de Mirtes. Estavam namorando havia mais de seis meses, e Marcelo pensará até em ir falar com o pai dela e namorar em casa.
Uma sensação de fracasso o acometeu. Por que para ele nada dava certo? Ele fazia o melhor que podia, mas tudo saía errado.
Foi ao médico e, conforme desejava, conseguiu uma semana de licença.
Em casa, comendo a comida insossa da dieta que o médico recomendara, assistindo à televisão, sentia-se desanimado e infeliz.
Entretanto, ninguém podia saber que ele se sentia derrotado. Quando alguns amigos ligavam, dizia que estava melhorando e aproveitando para descansar.
Recebeu alta do médico e deveria voltar ao trabalho no dia seguinte. À noite, estava em casa e o telefone tocou. Ele atendeu e ouviu:
- Marcelo? É Mirtes. Como vai? Já sarou?
O coração dele disparou. Respondeu com voz insegura:
- Já, obrigado. Amanhã volto ao trabalho.
- Você está bem?
- Estou.
- Pois eu não. Sinto-me infeliz, estou sofrendo muito. Preciso falar com você, explicar...
- Tudo está claro. Não há nada a explicar.
- Mas eu quero. Desde aquela noite não tenho dormido. Não sei como fiz aquilo! Por favor, precisamos conversar.
- Para quê? Acho que não há nada entre nós. Está claro que você prefere Valdo. Aliás, as garotas ficam logo caidinhas por ele. Aconteceu com você.
- Não é isso, não - respondeu ela chorando. - Não faça isso comigo. É de você que eu gosto. Quero conversar. Não me negue esse favor. Venha, estou esperando.
Ele hesitou, depois resolveu:
- Está bem, eu vou.
- Estarei esperando no lugar de sempre.
Quando desligou o telefone, arrependeu-se de haver prometido. A raiva ainda não havia passado. Mas ela estava chorando, arrependida, sofrendo, e ele não poderia ignorar o sofrimento dela.
Aprontou-se e foi ao encontro. Vendo-a, notou logo que estava abatida, havia chorado muito. Ficou sensibilizado.
- Desculpe o que fiz - disse ela. - Desejo pedir-lhe perdão. Aguardo sem pensar. Valdo me convidou e eu tive vontade de ir. Mas, assim que vi você na saída, me arrependi.
- Sua atitude na hora não mostrava isso.
- As pessoas estavam olhando. Gérson estava com você. Acho até que foi ele quem lhe contou.
- Ele é meu amigo.
- Ele gosta de ver o circo pegar fogo, isso sim. Mas agora não importa. Na hora fiquei tão chocada que não tive coragem para reagir. Fomos embora, mas, assim que chegamos em casa, disse a ele que era de você que eu gostava e que nunca mais desejava vê-lo.
O semblante de Marcelo distendeu-se:
- Você fez isso mesmo? Disse a ele que gostava de mim?
- Disse. Ele insistiu, ficou nervoso, mas eu não cedi.
- Por que não me procurar para dizer isso? Esperou todos estes dias?
- Queria procurá-lo logo no dia seguinte, mas tive vergonha. Soube que estava doente e fiquei muito preocupada. Hoje não aguentei e resolvi ligar.
Mirtes abraçou-o e continuou:
- Não suportava mais a saudade de você! Diga que me perdoa e que vamos continuar nosso namoro!
Ele sentia o calor do corpo dela junto ao seu e o perfume gostoso de seus cabelos. Não resistiu e beijou-a nos lábios demoradamente. Aquele beijo tinha para ele um misto de prazer e de dor que não sabia descrever. Foi mais saboroso do que todos os outros. Decidiu:
- Vamos esquecer o que passou. Só espero que você nunca mais faça aquilo.
- Amanhã gostaria que fôssemos à festa de aniversário de Nicinha. Quero que todos vejam que, apesar de tentarem nos separar, nosso amor é mais forte.
- Quer mesmo ir? E se Valdo estiver lá? Ele é amigo dela.
- Ele terá certeza de que não quero nada com ele.
Marcelo concordou. Seria bom mostrar aquele conquistador barato que era dele que Mirtes gostava de verdade, que só porque Valdo era boa-pinta, tinha carro do ano, dinheiro e fama de irresistível, todas as garotas suspiravam por ele. Mas Mirtes resistira. Mirtes preferira-o a ele e dissera-o com firmeza. Sentiu-se um herói. Ele levara a melhor, ficará com a menina.
- Está bem. Iremos.
Despediram-se no portão da casa dela. Depois que ele se foi, Mirtes entrou e encontrou a irmã à sua espera.
- Pelo jeito, você conseguiu! Nunca pensei que ele fosse tão bobo.
Ela deu de ombros:
- Ele é fácil de manejar. Aquele sem-vergonha do Valdo vai ver só. Vou passar na frente dele aos beijos com Marcelo.
Alzira começou a rir:
- E você acha que ele vai ligar?
- Valdo verá que não preciso dele. Tenho quem me queira.
- Se ele estiver com aquela loira com quem estava ontem, nem vai enxergar você.
- Chega de falar nela. Só em pensar, o sangue me sobe.
- Você é boba de se iludir com Valdo. Ele é volúvel e nunca se interessou a sério por ninguém. Dizem até que ele anda com aquela mulher casada que sempre aparece na revista. Como é mesmo o nome dela?
- Não acredito em nada disso. É intriga. Inveja dos rapazes, por ele ser tão bonito e rico. Se soubesse como ele beija...
- É assim que ele faz. Assanha as meninas e depois as larga. Se eu fosse você, tirava esse cara do pensamento. Ele não serve para nada. É fútil e mulherengo. Deixou-a tão apaixonada que você está metendo os pés pelas mãos. Seria mais decente se deixasse Marcelo em paz. Ele é pessoa de boa-fé, não merece ser enganado dessa forma. Mirtes deu de ombros:
- Quem manda ser bobo? O mundo é dos espertos. Ele que aprenda a se defender. Estou fazendo o que acho bom para mim. Valdo me desprezou, e não vou deixar isso passar tão facilmente. Ele ainda vai voltar, você vai ver.
- Não creio. Ele não serve para você. Insistir só vai lhe causar aborrecimento.
- Vire essa boca para lá. Você nunca concorda com o que faço.
- Só faz coisas erradas e sempre acaba se machucando. Quando vai aprender?
- Quem é você para saber o que é bom para mim? É mais nova do que eu e acha que sabe mais.
- Tudo bem. Não está mais aqui quem falou. Faça como quiser. A vida é sua. Se preferir um abacaxi, terá de descascá-lo.
Mirtes virou as costas e foi para o quarto. Precisava pensar no vestido que usaria na festa de Nicinha. Tinha de ficar linda!
No dia seguinte, Marcelo voltou ao trabalho. Gérson, em companhia de outros colegas, estava conversando na porta de entrada. Vendo Marcelo aproximar-se, perguntou com ar de deboche:
- Então, já curou a dor-de-cotovelo?
Marcelo parou, sorriu com ar de superioridade e respondeu:
- Que dor-de-cotovelo?
- A que o deixou de cama todos estes dias. Ou foi a vergonha?
Enquanto os demais sorriam maliciosos, Marcelo tornou:
- Para seu governo, o que eu tive foi uma intoxicação.
- É, engolir a raiva intoxica mesmo.
Marcelo ficou sério:
- Olhe aqui. Não gosto dessas insinuações. É bom que saibam a verdade. Valdo convidou Mirtes para ir ao cinema, ela ficou tentada e foi. Mas foi até bom, porque ela percebeu que ele não é nada do que as garotas dizem por aí. Reconheceu que é de mim que ela gosta. Deu o fora nele e veio correndo me pedir perdão.
- Ha ha! E você, claro, perdoou. Essa, contando ninguém acredita! Só você mesmo!
- Você diz isso porque está decepcionado. Correu a me chamar para ver os dois saindo do cinema. Está interessado nela?
- Essa eu não quero nem coberta de ouro. É mentirosa, interesseira. Como pode ser tão confiante? Sabe o que mais? Logo no dia seguinte em que eles foram ao cinema, Valdo conheceu uma loira fenomenal e se agarrou nela. Desde esse dia não a largou mais. Foi isso. Mirtes não deu o fora nele. Foi ele que a largou, como faz com todas. O que ela não quer é ficar na mão. Como não deu certo, voltou para você correndo. Afinal, mais vale um pássaro na mão do que dois voando...
- Não adianta falar com você. Depois, ninguém tem nada com minha vida. Sei o que estou fazendo. E sabe o que mais? Está na hora de trabalhar. Vou entrar.
Marcelo afastou-se, mas ainda ouviu alguns comentários que eles fizeram entre si e sentiu-se humilhado. Seria verdade mesmo? Mirtes teria mentido?
Sentiu vontade de ligar para ela e desfazer o compromisso da noite. O que eles falavam podia ser verdade. Valdo era assim mesmo. Um sentimento insuportável de fracasso o acometeu. Mirtes só o procurara porque fora desprezada.
De certa forma, sentia-se vingado. Ela preferira o outro e fora abandonada. Bem feito! Teve vontade de acabar com o namoro e mostrar para os colegas que ele não se deixará enganar pelas lágrimas dela.
Mas e se ela estivesse arrependida mesmo? E se ela, ao compará-lo com o Valdo, houvesse percebido sua sinceridade, sua bondade, e o estivesse valorizando? Ele era um moço honesto, amoroso, sincero, enquanto Valdo era farrista, volúvel. Certamente Mirtes voltará a procurá-lo porque reconheça suas qualidades.
Resolveu deixar tudo como estava. Iria ao aniversário de Nicinha com ela.
A festa estava animada, e, assim que entrou, Marcelo notou que os colegas presentes comentava entre si. Mirtes estava linda. Nunca a vira tão bela e elegante. Diante de sua admiração, ela dissera:
- Esta é uma noite especial. Temos de comemorar. Desejo que todos saibam quanto nos amamos e que estamos mais unidos do que nunca!
Ele se sentia orgulhoso e comovido. Ela se embelezara toda para ele! Fora ao cabeleireiro, vestira-se com apuro. Era a moça mais bonita da festa. Ela tinha razão: todos precisavam saber que era dele que ela gostava.
Satisfeito, Marcelo cobria-a de atenções e ela correspondia mostrando-se amorosa como nunca.
Quando Valdo entrou Marcelo notou o murmúrio entre as mulheres. Estava acompanhado por uma loira muito elegante e bonita. Apesar de sentir uma ponta de ciúme, Marcelo foi forçado a reconhecer que era uma mulher maravilhosa. Ouviu alguém dizer:
- É aquela modelo alemã que está estreando como atriz. Veio filmar no Brasil algumas cenas do filme que está fazendo. Como é mesmo o nome dela?
Ninguém sabia ao certo. Mirtes fez o possível para encobrir o despeito. A entrada triunfal deles deixou-a de mau humor. Agarrou-se a Marcelo dizendo:
- Vamos dançar, venha.
O conjunto tocava uma música romântica e Mirtes agarrou-se a Marcelo, encostando o rosto em seu peito. Ele sentia o corpo dela colado ao seu e só tinha olhos para ela. Nem sequer notou que Mirtes de vez em quando olhava furtivamente para os lados, procurando saber onde Valdo estava.
De mãos dadas com a loira, Valdo conversava animadamente com os pais da aniversariante. Seu sucesso não era só com as mocinhas, mas também com os mais velhos. Onde quer que aparecesse, era sempre bem recebido. As pessoas apressavam-se em cumprimentá-lo, dar-lhe atenção. Os garçons serviam-no melhor e em primeiro lugar.
Pararam de dançar e Marcelo notou que os olhos de Mirtes acompanhavam Valdo, detendo-se nele. Sentiu um aperto no peito. Não se conteve:
- Você não tira os olhos de Valdo.
- Estava olhando para ela. Ouvi alguns comentários no toalete.
- É linda! E ele parece muito interessado nela.
- É, mas logo ela volta para a Europa e ele vai ficar na mão.
- Bobagem. Ele trabalha na empresa da família, tem dinheiro. Se quiser, pode ir atrativo dela. Pelo jeito, é o que vai acontecer...
Ela se irritou:
- Não sei o que vocês vêem nessa loira aguada! Só porque ela é artista, todo mundo fica logo de queixo caído. Pois para mim isso não vale nada. É uma mulher comum, como qualquer outra.
- Você não tem por que sentir ciúme dela, afinal é muito bonita também. Para mim, você é até mais bonita do que ela!
- Conheço você! Diz isso só para me agradar. Pois não precisa, ouviu? Seu fingido! Não gosto de mentiras. Não pode deixar de ser bonzinho pelo menos uma vez na vida?
- Por que está brigando comigo? O que foi que eu fiz?
Ela fez um gesto de contrariedade e respondeu:
- Nada. Você nunca faz nada. É perfeito. Esta festa está uma porcaria. Vamos embora. Não aguento mais isto.
- Espere aí. Até agora a festa estava maravilhosa. O que mudou?
- Nada mudou. Eu quero ir embora.
Saíram. Durante o trajeto, Mirtes ia calada e pensativa. Valdo não pareceu sequer tê-la notado. Era irritante a maneira como ele olhava para a loira e o sucesso que ele fazia em todos os lugares.
O que mais irritava Mirtes era que ele parecia não fazer nada e, no entanto, as pessoas circulavam à sua volta como abelhas no mel. Era muita sorte! Ela nunca vira uma pessoa tão privilegiada!
Marcelo tentou conversar:
- Não entendo você. Estava tão animada, cheia de amor, de carinho. De repente mudou: achou tudo ruim, ficou mal- humorada. Aconteceu alguma coisa que não vi?
- Aconteceu, sim. Aconteceu que de repente aquela festa ficou sem graça. Esperava tanto desta noite... Estou decepcionada. Não tenho vontade de conversar.
- Não é possível. As pessoas não mudam assim de uma hora para outra. Deve haver uma razão. Gostaria que contasse.
- Estou com sono. Quero chegar logo em casa.
Ele acelerou o carro e em poucos minutos chegaram. Com um beijinho ligeiro na face é um boa-noite, Mirtes desceu do carro, abriu o portão do jardim e entrou sem olhar para trás.
Marcelo ficou aborrecido. O que estaria acontecendo com ela? Por que aquela mudança com relação a ele? Teria ficado com ciúme de Valdo?
Sentiu um aperto no peito. Não. Ele se recusava a acreditar naquilo. Mirtes demonstrará que era dele, Marcelo, que ela gostava. Fora carinhosa como nunca. Ele preferia acreditar que ela realmente se sentirá cansada e se entediara na festa.
Ele mesmo sentira-se incomodado com as atenções que todos davam a Valdo. Não era justo. Só porque ele era rico e tinha boa aparência, todos o cumulavam de gentilezas. Nem os donos da casa sabiam o que fazer para agradá-lo. Desde que apareceu, ele havia sido o centro das atenções. Dê uma forma ou de outra, todos se interessaram pelo que ele falava, fazia, com quem ele estava, como estava vestido.
Era o cúmulo. Pensando bem, lá estavam rapazes bem vestidos e tão bonitos quanto ele. Por que as pessoas o endeusavam?
Sentiu uma ponta de inveja. O que ele tinha que os outros não tinham? Ele não era rico como Valdo, mas sua família era de classe média. Seu pai era um executivo que trabalhava para uma grande empresa, com alto salário.
Ele mesmo havia se formado administrador de empresas, trabalhava havia três anos em uma conceituada firma, com bom salário e acentuadas possibilidades de progresso. Havia começado lá quando cursava o último ano da faculdade, já pensando na possibilidade de fazer uma carreira em sua área.
Tinha consciência de que era um bom partido para qualquer moça. Formara-se aos vinte e quatro anos, estava bem empregado, era generoso, correto, delicado, honesto, gentil. Por que ninguém reconhecia isso e tinha sempre de levar a pior? Por que Valdo, que era leviano e não levava nada a sério era sempre bem-visto?
E, ao contrário de Marcelo, Valdo nem precisou conquistar um emprego, uma vez que trabalhava nas empresas do pai, o que equivale a dizer que não tinha de se esforçar. Aliás, já ouvira comentários de que ele nem precisava cumprir horário. Podia dormir tarde, que no dia seguinte só comparecia ao trabalho depois do almoço.
Marcelo chegou em casa desanimado e triste. A vida era injusta. Fora visível a mudança de Mirtes depois que Valdo chegou à festa com a loira.
Um pensamento incomodou-o: teria ela se embelezado toda por causa de Valdo? Estaria, como tantas, interessada nele?
Nesse caso, seria melhor acabar com o namoro. Não se sentia disposto a conviver com essa desconfiança. Seus amigos tinham razão. Ela o usara e ficava mal-humorada porque as coisas não saíram como ela gostaria.
Deitado em sua cama sem poder dormir, Marcelo percebeu tudo com clareza. Ela era falsa e interesseira. Gérson estava certo.Ele fora um fraco. Remexeu-se na cama e o sangue subiu em seu rosto. Por que não reagira quando os viu saindo do cinema? Ele não era covarde. Por que ficara parado e engolira a afronta? Ele precisava reagir. Estava cansado de ser desvalorizado, passado para trás, deixado de lado. Dali para frente seria durão. Não deixaria passar nada. Se alguém o ofendesse, responderia à altura. Precisava mostrar a todos que não era o covarde que parecia ser.
Mirtes iria ver que ele não era o bobo que ela imaginava. Confortado por esse pensamento, finalmente conseguiu adormecer.