Mirtes abriu os olhos assustada. Sua barriga queimava. Além disso, sentia tonturas e tinha dificuldade de raciocinar.
Lembrou-se de que havia bebido um pouco a mais, e talvez a bebida lhe tivesse feito mal. Olhou em volta. A sala branca estava silenciosa. Não havia ninguém. Que lugar era aquele?
A um canto, algumas macas e dois corpos cobertos por um lençol. O lugar era frio e provocou-lhe desagradável sensação. Estaria sonhando?
Passou a mão pela cabeça tentando mandar embora aquele atordoamento. Sentiu medo e desejou sair dali, mas a curiosidade foi mais forte.
Que corpos eram aqueles cobertos? Claro que estavam mortos. Só se cobre a cabeça de uma pessoa quando está morta.
Aproximou-se de um deles e tentou levantar o lençol, mas não conseguiu. Sua mão passava por ele sem tocá-lo. Sem saber o que fazer, fixou o olhar sobre o corpo e imediatamente viu que era o de um homem jovem.
Aproximou-se do outro e naquele momento dois rapazes de branco entraram na sala. Um deles levantou o lençol e Mirtes estremeceu: era ela que estava estendida naquela maca, nua e gelada.
O que significava aquilo? Que pesadelo era aquele? Apavorada, saiu correndo e nem sequer notou que passou através das portas fechadas. Viu-se na rua. Mas era estranho, as pessoas falavam, os carros andavam e ela não ouvia nenhum ruído. Era como se estivesse morta.
Claro que só podia ser um pesadelo. Em breve ela acordaria e tudo voltaria ao normal. Aquele corpo costurado e frio não era o dela. Era uma ilusão, um sonho. Ela estava viva. Podia se apalpar, sentir, pensar.
Mirtes não sabia por quanto tempo perambulou pelas ruas tentando voltar para casa. Cansada, sentou-se em uma praça. Um jovem sentou-se a seu lado, olhou para ela e sorriu.
Ela notou que ele a estava vendo, o que não acontecia com as pessoas com quem havia tentado conversar. Aproveitou o momento:
- Você está me vendo?
- E ouvindo muito bem.
- Quero ir para casa, sair deste pesadelo horrível.
- Não é um pesadelo.
- O que é, então?
- Uma mudança de estado. Você está em outra dimensão. Sua casa agora é outra.
- Não acredito. Como pode dizer uma coisa dessas?
- É verdade. Você não pertence mais ao mundo dos encarnados.
- Não pode ser. Quem fez isso comigo? Como me tiraram de lá, assim, de uma hora para outra, sem meu consentimento, justo agora que eu estava no auge de minha vida?
- Há momentos em que a vida assume a direção e é preciso aceitar.
- Eu quero voltar para minha casa. Você não está dizendo a verdade.
- É melhor aceitar o inevitável. Você não pode mais voltar para lá. Vim buscá-lá. Vou levá-la para um lugar onde ficará amparada e receberá todos os esclarecimentos que quiser.
- Não quero ir. Não o conheço e não acredito em nada do que está dizendo. Quero ir para minha casa. Fique sabendo que tenho dinheiro. Agora sou rica. Se me levar para lá, posso recompensá-lo muito bem.
Ele sorriu e respondeu:
- Eu não preciso de nada. Vim para ajudá-la. Venha comigo.
- Já disse que não quero. Deixe-me em paz. Está confundindo minha cabeça.
- Você está chegando agora e desconhece os perigos a que está sujeita. Venha comigo. Se não gostar do lugar, poderá sair.
- Não. Você está querendo me seqüestrar. Vou procurar a polícia e dar queixa.
- Está bem. Não posso força-lá.
Ele desapareceu e Mirtes olhou em volta assustada. Ninguém podia desaparecer daquele jeito. Que loucura era aquela? A lembrança do corpo costurado a atormentava. Aquilo só podia ser um pesadelo. Ela estava viva, bem viva.
Sentou-se novamente e começou a pensar em sua casa, como gostaria de estar lá. Era tudo tão lindo, tão agradável...
De repente, sem saber como, ela se viu em seu quarto, em casa. Humberto estava deitado, abatido, pálido. Estaria doente?
Radiante, Mirtes aproximou-se dele, dizendo:
- Finalmente eu o encontro! Como é bom estar em casa! O pesadelo acabou.
Humberto, porém, não se mexeu. Continuou cabisbaixo, triste. Mirtes insistiu:
- Humberto, sou eu. Voltei para casa! Ajude-me! Não sei o que aconteceu, mas meu vestido está roto, sujo de sangue, estou machucada, preciso de um médico.
Ele continuava sem nenhuma reação. Talvez estivesse doente mesmo. Mirtes saiu à procura de algum criado que pudesse explicar-lhe o que estava acontecendo.
Foi em vão que tentou atrair a atenção deles. Ninguém a ouvia ou via, e ela foi ficando desesperada. Aquilo não podia continuar. Tinha de haver uma explicação.
Mas ninguém a socorria. Precisava prestar atenção à conversa deles, talvez assim pudesse saber o que tinha acontecido.
A princípio não foi fácil. Ela via as pessoas conversando, mas não conseguia ouvir o que diziam. Redobrou a atenção e aos poucos foi conseguindo ouvir.
Falavam de um assalto, de um crime, estavam procurando um assassino. Ela viu Humberto contratar um detetive para investigar o crime. Até que, um dia, quando o detetive estava com ele, finalmente ela ouviu marido dizer:
- Continue investigando. Não descansarem enquanto não pegar o assassino de minha querida Mirtes.
"O assassino de minha querida Mirtes..."
Aquelas palavras caíram sobre ela como uma bomba e continuaram martelando em seus ouvidos. Ela gritou e perdeu os sentidos.
Quando acordou, continuava no quarto do casal. Aquelas palavras voltaram e ela ficou apavorada. Crime? Então era verdade mesmo? Ela estava morta? Aquele corpo frio, costurado, era o seu? Como podia ser isso se ela estava mais viva do que nunca? Lembrou-se das palavras de Isaltina e estremeceu. Estava ela falando a verdade?
Desesperada, Mirtes chorou copiosamente. Por que aquilo havia acontecido? Agora que ela tinha conseguido o que queria, jovem, admirada, rica, prestigiada na sociedade, alguem havia destruído tudo? Cerrou os punhos com raiva. Quem teria feito aquilo?
Quando se sentiu mais calma, decidiu ficar ao lado do marido e acompanhar as investigações. A pessoa que fez aquilo haveria de pagar caro pela maldade.
Mirtes ficou junto a Humberto e presenciou seu sofrimento. Triste e comovida com a atitude dele, quando o via triste, olhando seu retrato, dizia-lhe ao ouvido:
- Você é meu único amigo. Estou a seu lado. Juntos vamos descobrir esse assassino e nos vingar. Ele não pode ficar impune.
Naqueles momentos, Humberto sentia aumentar sua raiva e o desejo de vingança. Era em vão que os familiares de Mirtes tentavam demovê-lo. Ela ficava irritada vendo-os insistir para que ele deixasse a polícia cuidar do caso.
Foi com curiosidade que ela acompanhou Humberto à casa de Mercedes. Mais lúcida e habituada a seu novo estado, Mirtes conseguia perceber os pensamentos das pessoas. Notou ligo que Mercedes fingia-se compungida mas estava feliz com sua morte. Isso despertou nela uma suspeita.
Certa tarde, quando Humberto se despediu, ela continuou na casa de Mercedes. Pôde perceber o ciúme que ela sentia e i esforço que fazia para controlá-lo. Mirtes resolveu ficar ao lado dela para vigiá-la. Assim, ouviu uma conversa dela com Sobral ao telefone. suas suspeitas tinham fundamento.
Quando Mercedes marcou um encontro com Sobral para pagar-lhe os serviços no acompanhamento de Humberto e do caso, Mirtes foi atrás.
Sobral entrou no carro e Mercedes indagou como estava a investigação, ao que ele informou:
- Não descobriram nada. Nem podiam. Dinho está muito longe e não deixou pista.
- Humberto não desiste. Está com uma idéia fixa.
- A senhora pode ficar sossegada. Ninguém descobrirá nada. Tenho visto Humberto ir à sua casa muitas vezes. Desse jeito,a senhora logo conseguirá o que deseja.
- Você descobriu quem está trabalhando para ele?
- Ainda não. Mas, seja quem for, vai quebrar a cara. Foi tudo muito bem-feito.
- Espero que seja assim. Ninguém pode saber que fui a mandante. Paguei um preço caro. Espero que Dinho me esqueça e nunca volte para me chantagear.
- O que é isso, madame? Sou um profissional de confiança. Não teria contra do Dinho se ele não fosse um homem sério, cumpridor da palavra.
- Está bem. Se continuarem assim, não vão se arrepender. Sei reconhecer quem me é fiel.
Mirtes, sentada no banco traseiro do carro, ouvia estarrecida. Suas suspeitas estavam certas. Aquela mulher abandonada havia realizado sua vingança. Ao invés de acabar com o traidor, voltara-se contra ela. Se tivessem matado Humberto, teria sido até um bem, porque Mirtes estaria rica, jovem e viúva, pronta para usufruir da vida como gostaria. Mas não. Ela lhe tirara a vida. E agora teria de pagar por isso.
Irritada, Mirtes atirou-se sobre Mercedes dando-lhe socos e empurrões, dizendo revoltada:
- Sua traidora infame! Pensa que acabou comigo, mas estou aqui. Agora você vai pagar por tudo que me fez. Você e esse réptil que por dinheiro não hesita em chegar ao crime.
Mercedes sentiu uma tontura violenta e empalideceu. Sobral olhou-a assustado.
- O que foi? A senhora está se sentindo mal?
- Foi de repente... Fiquei tonta, minha cabeça pesa, estou com enjôo. Acho que vou desmaiar.
Sobral abriu as janelas do carro.
- Por favor, não faca isso. Não posso chamar ninguém. É perigoso que nos vejam juntos.
Mirtes afastou-se um pouco, procurando acalmar-se. Ela precisava saber quem havia atirado. Todos os culpados iriam pagar pelo crime. Ela não os deixaria em paz.
Mercedes respirou fundo e disse:
- Já passou. Tudo isso me deixou nervosa. Não gosto de tratar deste assunto.
- Nem eu. Nas precisamos ir até o fim.
Mirtes observava atentamente e decidiu acompanhar Sobral. Mercedes havia sido a mandante; restava saber quem consumou o crime.
Desde aquele dia, Mirtes passou a seguir Sobral. Descobriu que ele ganhava a vida enganando as pessoas para explorá-las. Na tarde do dia seguinte foi que ela viu o detetive ligar para Dinho. Exultou. Ele era quem procurava. Lembravam-se perfeitamente do nome.
Ouviu que Sobral dizia:
- Estou ligando para dizer que está limpo. Nosso negócio deu certo. Fique tranqüilo que o caminho está livre.
- Entendi. Mas não telefone mais. Só se tiver novidades. Por aqui está coberto, tudo como sempre, na mais perfeita ordem.
Despediram-se e Mirtes colou-se em Sobral. Ela queria conhecer Dinho.
Mas não conseguiu nada. Como saber onde ele estava? Apesar de não saber como fazer, continuou colada ao detetive. Seguia todos os seus passos.
Dois dias depois viu um rapaz entrar no escritório. Trazia a roupa rasgada e uma cicatriz feia no pescoço. Vendo-a, perguntou:
- Quem e você? O que faz aqui?
- Eu é que pergunto. O que quer?
- Tenho umas contas a ajustar com esse sujeito.
Mirtes riu satisfeita:
- Eu também. Estou aqui para me vingar.
O rapaz abriu um sorriso largo e estendeu a mão, dizendo:
- Nesse caso, estou com você. Meu nome é Jairo.
- O meu é Mirtes.
Em um canto da sala eles desabafaram.
Jairo contou que estava apaixonado por uma mulher casada. O marido contratou Sobral para seguir a esposa. Ele fotografou tudo, mas o marido não quis fazer o flagrante. Disse que não queria escândalo. Preferia que alguém desse cabo do rival. Quanto à esposa, ele mesmo daria jeito.
- Sobral, esse bandido, contratou um matador que me tirou a vida à queima-roupa.
- Já sei: Dinho.
- Esse mesmo. Como você sabe?
Mirtes contou tudo e finalizou:
- Preciso descobrir onde ele está. Por isso estou aqui. Todos o que me mataram vão pagar.
- Você não pode fazer nada. Faz um ano que estou seguindo. Sei onde esse canalha está, mas não consegui fazer nada contra ele. Voltei para tentar alguma coisa contra Sobral.
Mirtes entusiasmou-se:
- Você vai me levar aonde esse assassino está.
- Não adianta. Ele é muito perigoso. Tentei de todas as formas me vingar dele, mas ele tem alguns asseclas que o protegem. Quase acabaram comigo.
- Como assim?
- Pessoas como nós, sem corpo de carne. Eles nem me deixaram chegar perto dele.
Mirtes ficou pensativa, depois disse:
- Nesse caso é preciso usar a inteligência, fazer tudo sem que eles saibam.
- Como pensa agir?
Antes que Mirtes pudesse responder, entrou na sala uma mulher com roupas sujas de sangue, cabelos desalinhados, olhos aflitos. Aproximou-se de Jairo, dizendo:
- Procurei você por toda parte. Por que me abandonou?
- Eu não a abandonei. Estou procurando resolver nossos problemas. - Voltando-se para Mirtes, que os observava curiosa, continou: - Esta é Eli. Foi por ela que me apaixonei.
- Quer dizer que ela também foi assassinada?
- Sim. Pelo próprio marido. Ele fez umas alterações no carro dela. Na estrada ela ficou sem breque e despencou no barranco. Assim ela veio. Todos pensaram que foi acidente.
- Quer dizer que o marido dela continua livre?
- Livre e já está saindo com outra.
- Aquele cachorro não perde por esperar - interveio Eli com raiva.
- Todos temos contas a ajustar. Juntos poderemos conseguir o que pretendemos. Eu ajudo vocês e em troca vocês me ajudam. Que tal?
Os dois concordaram e ali mesmo selaram o pacto de vingança. Jairo e Eli tinham morrido havia mais de cinco anos. Nesse período haviam se juntado a outros que como eles desejavam ajustar contas com pessoas na Terra que os tinham prejudicado.
Graças a alguns serviços que prestavam ao grupo, haviam conseguido lugar para morar e convidaram Mirtes para ir com eles. Assim, poderiam planejar os próximos passos. Ela concordou.
O lugar era um sobradão abandonado onde viviam outros desencarnados. Mirtes não gostou do lugar, mas precisava ter paciência. Depois cuidaria de seu futuro. Naquele momento queria vingar-se. Com a ajuda deles, tudo seria mais fácil. Confirmou-se em ficar ali por algum tempo.
A primeira providência foi conhecer Dinho. Jairo e Eli a levaram até ele. Residia em um pequeno sítio onde plantava alguns alimentos e vivia com simplicidade. Vendo sua casa simples, sua vida modesta, ninguém imaginaria que ele tivesse dinheiro no banco, muito bem aplicado, e algumas propriedades em São Paulo.
Era tido pela vizinhança como pessoa de bem, embora vivesse retraído. Morava em companhia de uma mulata que lhe servia de criada e de amante.
Mirtes duvidou, mas Jairo mostrou-lhe no porão as armas muito bem cuidadas, munição e as roupas que usava quando saía para fazer seu trabalho. Vendo-o, Mirtes não se conteve. Atirou-se sobre ele gritando com raiva:
- Assassino! Você me tirou a vida, precisa pagar. Você vai ver!
Jairo tentou segurá-la, dizendo:
- Não faça isso. Eles vão nos pegar.
Nesse instante dois homens apareceram e agarraram Mirtes, que se debatia tentando soltar-se sem conseguir.
- Este terreno é proibido. Como você entrou aqui? - gritou um deles.
Jairo, que se escondera fora da sala, apareceu dizendo:
- Ela não sabia. Está alucinada. Vou levá-la embora. Isso não vai mais acontecer.
- Eu conheço você - disse o outro. - Eu já disse que não era mais para voltar aqui.
- Vim atrás dela para impedir que entrasse na casa. Ela não está em seu juízo perfeito.
Mirtes estava muito assustada, mas aproveitou a deixa, fingindo-se de louca, rindo e não falando coisa com coisa.
Os dois olharam-na desconfiados. Depois um deles segurou-a pelos braços e sacudiu-a, gritando:
-Vou deixá-la ir. Mas nunca mais apareça por aqui. Da próxima vez coloco você no calabouço. Lá aprenderá a respeitar nossas ordens.
Ela continuou resmungando. Jairo segurou-a e levou-a embora rapidamente. Eli, que os esperava, foi dizendo:
- Você já não a tinha avisado que não podia fazer isso? Acho que não devemos ajudá-la. Ela vai nos meter em confusão.
- Não - apressou-se a dizer Mirtes. - Pode confiar. Nunca mais farei isso.
Lágrimas corriam pela face. Ela estava assustada.
- É melhor assim - disse Jairo. - Vamos planejar tudo com inteligência. Não foi isso que você disse? Eles são mais fortes do que nós. Não podemos fazer nada.
- Mas, quando me atirei sobre a mulher que mandou me matar, ela passou mal.
- Ela está encarnada. Não pode ver você. Além do mais, os encarnados pensam que nós estamos mortos. Não sabem que continuamos vivos.
- Nesse caso, você tem razão. Vamos deixar esse matador para o final, já que ele é protegido por desencarnados. Trataremos primeiro dos outros: o detetive, Mercedes e o marido de Eli. Afinal, foram eles que pagaram o matador que Sobral intermediou.
Os dois concordaram com entusiasmo. Combinaram vigiar todos os passos dos três. Enquanto Mirtes cuidaria de Mercedes, Eli cuidaria do marido e todos vigiariam Sobral.