Capítulo 23

713 24 6
                                    

     Quando Mercedes acordou, chamou diversas vezes por Humberto. A criada ligou com urgência para ele, que dirigiu-se para lá acompanhado de um médico psiquiatra. Chegando ao apartamento, o médico pediu para ficar a sós com ela.
     Humberto esperou na sala ansioso. Desejava deixar Mercedes nas mãos de um especialista capacitado e afastar-se. Ele havia se convencido de que sua presença a estava prejudicando.
     Uma hora depois, quando o médico entrou na sala, Humberto levantou-se e indagou:
     - E então, doutor, o que achou?
     - Ela está mesmo com o sistema nervoso muito abalado. Ao deixar o quarto, conversei com a criada, que me informou que Dona Mercedes não gosta de tomar calmantes. Imagina que eles lhe fazem mal.
     - É um absurdo.
     - Se ela tivesse tomado os medicamentos que lhe foram receitados, não teria chegado a este estado. Está com idéia fixa, julga-se culpada pelo afeto que tem pelo senhor e imagina que sua esposa morta deseja vingar-se.
     - Ela me disse isso. Infelizmente minha esposa morreu assassinada por um assaltante e até agora a polícia não conseguiu descobrir nada. Mercedes é muito dedicada a mim. Depois que enviuvei de minha primeira esposa, ela se tornou minha companheira. Sempre foi muito boa. Quando me apaixonei por Mirtes, aceitou nossa separação, mas, segundo diz, nunca deixou de me amar. É uma pessoa boa, que só deseja minha felicidade.
     O médico olhou-o admirado.
     - Penso que o senhor está enganado. Dona Mercedes odeia sua esposa.
     - Ela lhe disse isso?
     - Não. Mas percebo claramente seu ódio quando a mencionava. Ela não que ver essa realidade.
     - Nunca me pareceu isso.
     - Pois para mim ficou claro. Ela aceitou a separação aparentemente. No fundo odiou ser trocada por uma mulher mais jovem. Essa é uma reação natural em um caso desses. Ela foi rejeitada, abandonada, odiou a rival que lhe roubou o homem amado. Fez mais: em seu inconsciente desejou que ela desaparecesse, que morresse. Quando soube que sua mulher havia sido assassinada, sentiu-se culpada. A culpa faz a pessoa sentia-se má. Ninguém quer seu mau. Passou a ter pesadelos, insônia, medo de dormir, e alucinou.
     Humberto passou a mão pelos cabelos, pensativo. O que o médico dizia tinha lógica.
     - Pode ser isso, doutor. Hoje, quando cheguei aqui, ela se sentou a meu lado no sofá dizendo quanto me amava e sofria vendo meu sofrimento. Depois que terminamos nosso caso, tornamo-nos apenas amigos e nunca mais tivemos intimidade. Mas, nesta tarde,  além de declarar seu amor, ela me beijou com tal calor que não tive coragem de repelir. Foi nessa hora que ela teve a alucipouco.
     - Aí está. Tal como eu disse! Ela está sob o efeito da culpa.
     - Decidi afastar-me dela. Pretendo acompanhar o tratamento, mas não quero vê-la. Sinto que minha presença a prejudica.
     - Ela vai ter de aprender a lidar melhor com isso. Mas o início do tratamento será melhor que fique afastado dela. O senhor também está muito abalado. Por que não faz uma viagem, tenta distrair-se um pouco?
     -Não tenho vontade. Minha vida acabou depois da morte de Mirtes.
     - O tempo cicatriza as feridas. Hoje há medicamentos que ajudam a vencer a depressão.
     - Não há remédio que cure a dor que sinto. Mas obrigado pelo interesse. O que sugere para o caso de Mercedes?
     - Ela precisa de um tratamento firme, contínuo. Como não toma remédio, seria indicado ela ficar algum tempo em minha clínica. Lá tomará os medicamentos na hora certa, e na terapia vamos procurar torná-la consciente de sua ilusão. Quando ela aceitar a realidade, estará curada.
     - Ela não vai querer ir.
     - Procure convencê-la. Nossa clínica é moderna, agradável. Tenho certeza de que se sentirá bem lá. Se ela continuar como está, vai piorar.
     -A injeção fez bem a ela. Apesar da inquietação que tem, seu rosto está mais corado.
     - No início poderemos fazer uma semana de sonoterapia. Antes preciso fazer-lhe alguns exames clínicos.
     - Farei o possível para convencê-la. Amanhã mesmo a levarei até lá.
     - Seria bom. Quanto antes iniciarmos o tratamento, melhor será.
     Depois que o médico se foi, Humberto foi ter com Mercedes.
     - Sua aparência melhorou.
     - Dormi e o sono fez-me bem.
     -O médico disse que preciso cuidar de minha depressão. Aconselhou-me a fazer uma viagem. Hoje mesmo vou procurar a agência de turismo. Quero ir o mais cedo possível.
     - Posso ir com você?
     - Não. Você também precisa tratar-se. Ele quer que você fique alguns dias hospedada em sua clínica para tratamento.
     -Quer me internar?
     - Não. Ele apenas deseja que tome os remédios na hora certa e faça terapia. Acha que você precisa trabalhar suas emoções. Se fizer isso, dentro de pouco tempo estará curada.
     - Ele disse isso?
     - Garantiu. Então eu pensei: enquanto você fica se tratando com ele, eu faço uma viagem. Quando voltar, estaremos bem e falaremos sobre nossas vidas.
     - Você promete que pensará e mim?
     Ele segurou as mãos dela com carinho:
     - Amor eu não posso lhe dar. Estou incapacitado de amar. Mas gosto muito DS você, desejo que fique bem, que seja feliz. Quando eu voltar da viagem, estaremos melhor, tudo terá passado.
     Os olhos dela brilharam esperançosos.
     - Sim. Eu confio em você.
     - Vai fazer o tratamento?
     - Vou.
     - Amanhã mesmo eu a levarei até lá. Dentro de pouco tempo estará curada.
     No dia seguinte pela manhã, Humberto levou Mercedes à clínica. Era um lugar agradável, mais parecido com um hotel do que com um hospital. Mercedes estava nervosa, chorou ao despedir-se, e Humberto não via a hora de deixar aquele lugar.
     Chegou em casa mais deprimido do que nunca. Sentou-se na sala pensativo, sem coragem de fazer nada. Pouco depois, o criado avisou-o que Alzira e os pais haviam chegado.
     Humberto levantou-se para recebê-los. Os recém-chegados logo notaram que ele estava mais magro e mais triste. Depois dos cumprimentos, tentaram animá-lo um pouco, falando dos preparativos para o casamento de Alzira, marcado para dali a dois meses.
     Alzira aproximou-se de Humberto e tomou-lhe mão, dizendo:
     - Pensei que iria encontrá-lo melhor. Sinto que aconteceu alguma coisa que o abalou muito. O que foi?
     Talvez por estar fragilizado por haver sofrido tantos problemas e pelo fato de a voz de Alzira lembrar a de Mirtes. Humberto não conseguiu controlar-se e chorou convulsivamente.
     Estela e Antônio levantaram-se emocionados, e Alzira fez-lhes sinal para que se permanecessem sentados. Em silêncio, esperaram que ele se acalmasse. Por fim, Alzira disse:
     - As lágrimas lavam a alma.
     -Desculpem. Melhor seria eu ter morrido com ela. Aonde vou só levo tristeza e dor.
     - Não diga isso. Nós compartilhamos sua dor. Mas temos de aceitar a vontade de Deus. A morte é irreversível.
     - Eu sei. É isso o que me dilacera.
     - Juntos encontraremos forças para superar este momento difícil. Às vezes, desabafar é bom. O que aconteceu que o abalou tanto?
     - Preciso desabafar mesmo. Não sou de ferro... Vocês não ignoram que, antes de conhecer Mirtes, tive um caso com uma mulher chamada Mercedes. Ela me fazia companhia e ajudava a preencher o vazio deixado pela morte de minha primeira esposa.
     Ele fez uma pausa e, notando que os três o ouviam com respeito e atenção, continuou:
     - Quando me apaixonei por Mirtes e fui correspondido, senti que havia encontrado o amor de minha vida. Quando ela aceitou meu pedido, terminei o caso com Mercedes. Ela foi compreensiva. Deixei-a bem financeiramente e nos separamos.
     Humberto continuou falando de sua tristeza e de como encontrava em Mercedes a ouvinte atenta, a amiga carinhosa. Finalmente falou dos últimos acontecimentos, omitindo apenas o detalhe do beijo. Finalizou:
     - Hoje acompanhei Mercedes à clínica e deixei-a internada e chorando.
     Alzira olhou-o firme e disse:
     - Está na hora de você saber que a morte é apenas uma viagem. Mirtes continua viva em outra dimensão.
     - O que está me dizendo? Isso não é verdade. Ela está morta, e os mortos não voltam.
     - Está enganado. O corpo de carne de Mirtes morreu, mas seu espírito continuava vivo no outro mundo.
     Humberto olhou para os sogros como que pedindo esclarecimentos.
     - É verdade - confirmou Antônio comovido.
     - É essa certeza que nos tem confortado depois da tragédia - completou Estela.
     - Não... Não posso crer. Isso é ilusão.
     - Ilusão é pensar que a vida seja tão pequena que termine com a morte. O espírito é eterno. No universo nada se perde, tudo se transforma. A morte é uma transformação. Mas o espírito continua do mesmo jeito, consciente de tudo, com os mesmos amores e desejos que sempre teve - esclareceu Alzira.
     - Nunca ninguém provou nada disso - tornou Humberto.
     - Ao contrário: para os pesquisadores sérios, há inúmeras provas da sobrevivência do espírito após a morte. Creio que Mirtes apareceu mesmo para Mercedes. Ela era muito ciumenta. Pode ter se irritado com o afeto de vocês.
     Humberto baixou a cabeça envergonhado. Lembrou-se do beijo que trocara com Mercedes. Se Mirtes estivesse ali em espírito, teria ficado muito irritada. Mas isso era difícil de acreditar.
     - Seria muito bom se fosse verdade, mas não podemos cultivar uma ilusão.
     - Você está precisando de ajuda espiritual - disse Alzira com voz firme. - Vamos levá-lo ao centro espírita de dona Isaltina. Tenho certeza de que essa ajuda se estenderá sobre Mercedes.
     - Eu nunca fui a um lugar desses...
     - Há sempre uma primeira vez. Hoje à noite, eu e Valdo viremos buscá-lo. Depois da morte de Mirtes senti vontade de levá-lo, lá, mas não quis passar por cima de suas crenças. Agora sinto que é necessário. Não dá para esperar mais.
     - Por quê, filha? - indagou Antônio. - Humberto não está inclinado a ir. Temos de respeitar sua vontade.
     A voz de Alzira tornou-se mais firme e segura quando respondeu:
     - Trata-se de necessidade urgente. Mirtes não está bem. Se queremos ajudá-la, devemos fazer o que nossos mentores pedem. Humberto precisa atender à parte espiritual com urgência.
     - Nesse caso, eu vou - concordou ele, impressionado com o tom com que Alzira dissera aquelas palavras.
     - Viremos buscá-lo às sete.
     Quando deixaram a casa de Humberto, tanto Estela quanto Antônio estavam admirados com a atitude da filha, muito diferente do habitual.
     - O que aconteceu com você? - indagou Antônio assim que se viram a sós.
     - Senti una força muito forte e, quando vi, estava falando todas aquelas coisas com Humberto.
     - Acho que é mediunidade - considerou Estela.
     - Está se sentido bem? - indagou Antônio.
     - Muito bem. Durante nossa conversa com ele, parecia que eu estava flutuando. Uma sensação muito agradável.
     - Nesse caso, só podemos agradecer pela ajuda - tornou Estela.

Tudo tem seu preçoOnde histórias criam vida. Descubra agora