Capítulo 7: Fora da Bolha

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Por: Tatiana Castro

"Eu escalei as mais altas montanhas

Eu corri através dos campos.

Eu corri, eu rastejei

Eu escalei estes muros da cidade (...)

Apenas para estar com você (...)

Eu falei na língua dos anjos

Eu segurei na mão do demônio (...)

Mas eu ainda não encontrei o que estou procurando".

(U2, 1987. in: But I still haven't found what I'm looking for

Álbum: The Joshua Tree)

Definitivamente não estou mais na Áustria. O vento é tão abafado e cortante quanto o meu desespero. O caos em minha mente é similar ao instalado nas ruas em torno da Praça Vermelha. O cheiro da decomposição empesteia o ar carregado com a poeira dos destroços, aquecida pela fuligem dos focos de incêndios. Desconhecidos me empurram, acotovelando-se uns aos outros, alheios aos perigos de novos desmoronamentos na escuridão da madrugada. A cada corpo encontrado pelos bombeiros, gritos e soluços desesperados eclodem em vários pontos da multidão. O amanhecer chegará em breve e o tempo para encontrar meu pai é escasso.

Entrar rapidamente em uma Moscou, inerte pelo pânico, só foi possível por causa do meu sobrenome verdadeiro amplamente reconhecido no submundo. Dmitri transformou o nome Krovopuskov em sinônimo de poder e temor. Imagino que, se para mim, foi um choque descobrir o peso do legado sangrento construído por meu pai, o respeito, imposto pelo medo, abria facilmente as portas necessárias.

***

Oxford, Inglaterra – 1996

O violino parece não cansar de ser tocado, tanto quanto eu não me entedio de escutar Hope, minha colega de dormitório e melhor amiga, se esmerar em uma apresentação ao vivo em um pub próximo a universidade. Um ambiente minúsculo e claustrofóbico lotado de estudantes bêbados e desinteressados, absortos em conversas paralelas, não diminuem o entusiasmo da banda que finaliza com uma mistura de um clássico de Mozart com um lançamento do U2.

— Kira, você foi a única que não veio ao pub pela cerveja – Hope chega a conclusão ao atestar que até Patrick, seu namorado estava totalmente embriagado ao comemorar o final do semestre letivo.

— Não, Hope prefere vodka – Patrick debocha com a voz embargada pelo álcool, enquanto os outros ocupantes da mesa tentam disfarçar os risinhos.

— Cala a boca, Patrick – explodo, porém tento minimizar em seguida - a vodka inglesa deve ser tão insonsa quanto à comida.

— Ou mesmo aos homens britânicos – a namorada emenda imediatamente, sobressaltando os ouvintes, inclusive a mim. – Vamos embora, Kira. Não vou ficar aqui aguentando merda de bêbado.

Hope me arrasta pelo pub carregando o case com o violino na outra mão, enquanto evita pisar na barra da sua saia estampada com flores que, poderiam muito bem, ter saído direto da década anterior dominada pelos hippies.

— Não precisa me defender, Hope – Tento apaziguar a revolta de minha amiga, pois sua proteção se deve a todo o sofrimento que lhe revelei ter passado no internato. – Não sou mais criança.

— Precisa sim – protesta minha amiga já saindo do pub. – Kira, você não pode aceitar as pequenas ofensas, nem mesmo as dissimuladas em tom de brincadeira. É assim que começa: hoje uma piadinha sobre sua origem russa, amanhã se acham no direito de criticarem o seu corte de cabelo ou a profundidade do seu decote. Acha que nunca ouvi que uma negra norte-americana não podia tocar violino na Inglaterra. Não estaria aqui se escutasse a maioria das gracinhas, constantemente insinuando que só devia cantar black music no Harlen e não Mozart em Oxford.

A Fortaleza VermelhaOnde histórias criam vida. Descubra agora