Capítulo 31- Por trás da janela

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Por: John Kviatkoski

Ignestans

Em meio a objetos quebrados do aposento, observo Kira chorando. As lágrimas escorrem por sua pele macia enquanto observa o rosto de Wolf, que também sucumbiu ao choro. Ver Kira às lágrimas não era tão estranho quanto vê-lo chorar. Impressiono-me ao ver o contraste de seu rosto selvagem com as lágrimas puras e cristalinas. O reflexo de sua dor descendo por sua face.

Em toda minha existência, chorei uma vez. Foi pouco tempo antes de eu perder minha alma celestial. Lembro ainda hoje, nitidamente, as lágrimas quentes escorrendo por um rosto que nem sequer era meu. Era ela a razão do meu pranto, Telma, o primeiro degrau da escada do meu sucesso. Não sei até onde terei de subir, nem imagino se estou no meio ou no fim. Mas foram lágrimas verdadeiras, de alguém que não sabia o que seguir. Sentia-me preso na corrente de dúvidas, desejos e medos. Até hoje, ligeiramente, sinto isso. Perguntava-me o que era errado e certo — e hoje me questiono se há tal distinção. Céu e inferno sendo, respectivamente, imaginados como um lugar do bem e do mal, mas são diferentes de fato?

A vibração do celular, que agora está na cama, tira-me de meus devaneios. Pego e vejo uma notificação aleatória. A reprodução das torturas ainda continua, e cada vez pior. Fixo meu olhar em algo estranho nas imagens, que parece se repetir algumas vezes, dependendo do ângulo. Em uma janela escura, molhada pela tempestade que cai, vejo o letreiro de algo lá fora, mas não é possível ver inteiramente o que é, e tampouco é nítido.

— Olhem isso, ali, atrás da janela — mostro a eles uma das partes do vídeo onde aparece, rapidamente, o letreiro.

— O quê? — pergunta Kira, sem entender.

— Atrás da janela tem um letreiro amarelo. Veja bem — volto o vídeo e lhe mostro novamente.

Wolf, pela emoção que ainda sente, parece não entender onde quero chegar, por mais simples que seja a ideia.

— Meu pai está sendo torturado nessa porcaria e sua preocupação é com uma maldita janela? — ele me encara, indignado. — É o que se pode esperar de um demônio.

Por um segundo me pergunto o motivo de eu continuar nisso tudo, e no segundo seguinte penso em ir embora e esquecer de todo esse problema. Não é o meu pai que está sendo torturado, tampouco é chefe da máfia russa. Será que minha curiosidade acerca de Sangsue ainda existe realmente? Meu desejo carnal que ainda resta por Kira é relevante? E se estou aqui por esses dias apenas por ter me acostumado à situação? Não posso me deixar de lado desse jeito, devo pensar em mim. Desde que me tornei demônio, tento afastar de minha mente vários pensamentos sobre o que devo ou não fazer. Essas coisas me deixam louco, e nunca consigo expressar o terrível sentimento de dúvida que me aflige. Deixar-me levar pelo acaso parece o certo, o saudável a se fazer. Mas a ideia de não ter consciência de meu próprio rumo e do que se deve ser feito ou não me assusta.

Tenho pouco controle sobre mim e infelizmente estou ciente disso.

Resisto ao estranho desejo de ir embora. Simplesmente poderia desaparecer daqui e seguir meu rumo como se Ismael nunca houvesse existido, assim como toda essa Fortaleza. Mas não consigo imaginar o que fazer, não posso pensar em plano nenhum. Sinto-me profundamente conectado a essa situação, mesmo que não tenha relação direta a mim. Apesar de não haver um objetivo concreto, vou continuar a ajudá-los e achar Ismael. Porque sinto que devo fazer isso e assim ficarei satisfeito.

— Se encontrarmos o letreiro, também acharemos o lugar onde estão — diz Kira, com os olhos vermelhos pelo choro, analisando as imagens.

Respiro fundo e olho para a porta. Apesar da decisão, ainda me sinto duvidoso. Volto-me para Kira, ignorando Wolf que me olha com desprezo.

— Não é assim tão simples — explico, com a imagem do letreiro em minha mente. — Com somente a imagem do letreiro, não podemos encontrar o lugar. Há vários letreiros pelo país, deve haver algumas dezenas, pois se trata de uma rede de fastfood. Pelo ângulo, vê-se que a imagem foi tirada do segundo ou terceiro andar de algum prédio... Segundo andar, creio eu. Mas ainda assim, não é informação suficiente. Pode ser qualquer prédio ao lado de qualquer um desses vários estabelecimentos.

Apesar de já ter uma ideia de como começar a procurar o local, fico em silêncio para ouvir o que Kira tem a dizer. Sei que o lobo não pode chegar a alguma resposta, além do mais, nem sequer presta atenção no assunto, devido a preocupação.

— Mas não tem nada mais aqui para usarmos — diz Kira enquanto olha a imagem de várias maneiras. — Só se pode ver a cortina cobrindo boa parte da janela e o letreiro abaixo, envolto pela escuridão. E se nós... — Dá um grande zoom na imagem e aumenta o brilho da tela — Pode ser que seja possível ver nessa escuridão. Tem alguma forma de clarear a imagem?

Decepciono-me ao ver que Kira ainda não consegue chegar na resposta. Na verdade, não sei se conseguirei chegar ao local usando as informações que posso retirar do vídeo, mas acho muito provável. Não quero dizer a eles o que sei, deixarei eles tentarem sozinhos por algum tempo.

— Não é possível ver além dessa escuridão. A qualidade do vídeo é péssima. Toda essa negritude que vê é apenas tons de preto, nenhum programa pode iluminar isso, pois não há nada ali — divirto-me com a brincadeira, apesar da vontade de lhe dizer o que fazer.

Kira pede ao mordomo o notebook e envia os arquivos do celular para o aparelho. Enquanto analisamos os vídeos diversas vezes, Wolf anda pelo quarto, impaciente e ansioso por respostas que não se esforça em encontrar. Kira abre o navegador e acessa o Google Maps, pesquisa o nome do lugar do letreiro e várias opções aparecem pelo mapa da Rússia. A maior parte dos estabelecimentos se encontram em Moscou e em seus arredores, mas também há outros espalhados pelo país.

— Pode ser qualquer lugar! — diz Kira frustrada.

Mantemos o foco nos locais mais afastados e isolados, porque não se esconderiam em uma cidade grande. Infelizmente (para Kira), a imagem tem uma péssima resolução, então é impossível ver os detalhes do estabelecimento além do letreiro, que só é pouquíssimo visível por ser luminoso.

As horas se passam e continuo ao lado de Kira, pesquisando detalhes de vários desses lugares. Sem eu ter percebido quando se deitou, vejo que Wolf está dormindo na cama de Kira. Começo a observá-la quando se extingue meu interesse pela investigação. Nunca pude olhá-la tão de perto e sentir seu doce odor tão intensamente.

— O que você acha de mim? — pergunto à Kira, de repente.

— Que? O que quer dizer? — Depois de um longo tempo olhando para a tela do notebook, olha para meus olhos, confusa.

— Você me odeia, certo? Eu sinto isso — então fecho o notebook, mas Kira continua me olhando.

— Você está aqui conosco, estamos cooperando um com o outro em busca do que queremos. Não te odeio.

Seguro suas mãos e as sinto geladas nas minhas. Geladas e macias. Quase instantaneamente, Kira puxa sua mão longe de mim, assustada pelo meu repentino toque.

— Certeza? Então porque a repulsa? — pergunto, enquanto aproximo o meu corpo do seu.

Ela não diz nada, mas ainda me encara. Sei que o quase nulo interesse que ela sente não é natural, e sim devido ao fato de eu ser um demônio, mas isso não me importa de maneira alguma.

Então, de repente, ouvimos um breve toque no aparelho esquecido na cama. Curiosa, Kira pega o celular e lê as notificações. O espanto toma conta de sua face e logo me mostra as mensagens:

[03:47] +7(432)223-78xx:

Capturamos o desgraçado do Dmitri.

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