Por: Tatiana Castro
"(...) Eu sei que o erro aconteceu
Mas não sei o que fez
Tudo mudar de vez
Onde foi que eu errei?
(...) Será talvez
Que minha ilusão
Foi dar meu coração (...)
E o destino não quis
Me ver como raiz
De uma flor de lis".
(Djavan, 1976. in: Flor de Lis)
As águas escuras do rio Salzach embalam a minha última visão da Fortaleza de Sal. Esse foi o nome o qual os alemães batizaram a cidade austríaca de Salzburgo. Eu simplesmente a chamo de lar, provavelmente, o único local que realmente escolhi morar. Agora está tudo acabado. Que merda eu fiz? Apesar da amarga consciência de que logo não poderia mais ser a vivaz patronesse das artes, pelo simples fato de não envelhecer, nunca imaginei que hoje seria o dia que abandonaria tudo. E, mais uma vez, minhas decisões impensadas estão ligadas a ele... meu pai.
As construções de cinco andares que margeiam todo o rio ainda permanecem com as janelas iluminadas, contudo, já não escuto o burburinho do Festival de Verão que acontece nas ruas da cidade. Apenas o ronronar monótono do motor da embarcação, que me leva incógnita para Praga, faz às vezes de réquiem para Elizabeth Montgomery.
Utilizar meus poderes sobrenaturais para iludir o timoneiro foi relativamente fácil. Nada como um pouco de sedução para que o velho barrigudo expulsasse os pescadores bêbados, que aguardavam o raiar o sol para iniciarem uma nova jornada de trabalho, e, gentilmente, se dispôs a me conduzir diretamente para Praga, evitando passar pela Alemanha ou mesmo Viena. Somente quando, pela distância que o barco alcança, o grandioso castelo medieval de Hohensalzburg parecendo uma miniatura encimada na montanha dos Alpes de Salzburgo é que sinto que estou agarrando o colar que nunca deixa meu pescoço. O pingente em forma de flor-de-lis fica marcado em minha palma. Não preciso olhá-lo para lembrar o que a inscrição diz: Kira, 2011.
Esse era meu nome quando ainda me considerava a orgulhosa filhinha de Dmitri Krovopuskov. A história oficial dizia que o enigmático magnata russo foi um dos poucos beneficiados com o colapso da União Soviética no início dos anos 80. Pertencente a um seleto grupo denominado oligarcas, Dmitri enriqueceu e controlou boa parte das empresas russas, incluindo meios de comunicação, durante o governo de Gorbatchov. Graças a sua influência, fui uma das poucas garotas de nacionalidade russa a ser educada na Grã-Bretanha.
Assim que completei cinco anos, fui mandada para um dos mais importantes internatos para meninas no interior da Inglaterra. Nele, por séculos, estudaram a nata da sociedade europeia, incluindo monarcas. Obviamente, não fui acolhida pela maioria das internas:
– Sua comunista vermelha! – Esnobes xingavam recorrentemente ao longo de uma década e meia de torturante convivência. Desprezavam igualmente uma pátria que não me recordo e meus longos cabelos ruivos, herança de uma mãe que, falecida, me era tão desconhecida quanto à Rússia.
Todavia, uma vez por ano os queixos das adolescentes elitistas iam ao chão. Dmitri surgia, como uma força da natureza, na entrada pomposa do internato na noite de cada um dos meus aniversários.
– Está preparada para nossa aventura, Golubushka? – me saúda anualmente com o olhar intenso, apesar do apelido carinhoso.
– Sempre, pápa – respondo prontamente todas às vezes, vestida cada vez com um vestido florido novo que ele mandava confeccionar especialmente na Rússia.
Pode parecer que me contentava com migalhas, mas naquelas noites eu era o centro da atenção de Dmitri, como se ele tivesse saído diretamente de um conto de fadas para me salvar de todas as línguas maldosas. Isso era muito mais do qualquer uma das meninas do internato recebia de seus pais e compensava todas as míseras madrugadas chorando escondida debaixo das cobertas no dormitório.
Íamos aos mais exclusivos restaurantes, teatros e show que Londres oferecia ao longo dos anos 80, não importando que minha pouca idade fosse um empecilho. Foi em uma dessas noites que conheci a música clássica e me apaixonei pela energia de uma orquestra. Sempre terminávamos nossa aventura sobre a Ponte da Torre, fitando as águas do Tâmisa para completar nosso último ritual anual.
– Você ainda é muito nova, Golubushka – papai me diz ao caminharmos sobre a imponente ponte as 04:16, segundo ele, hora exata do meu nascimento doze anos atrás. – É uma jovem ávida por crescer e deixar sua marca no mundo, entretanto, quando temos muitas primaveras vividas, pode ser desafiador se entusiasmar pela que surge pela frente.
Dmitri retira uma pequena caixa vermelha do bolso interno de seu sobretudo negro, que antagonizava com a alvura de sua pele e cabelos loiros. Eu reconheci o recipiente rubro aveludado assim que pousou em minha mão. Mesmo prevendo o seu conteúdo, as batidas de meu coração aceleravam indomavelmente enquanto eu levantava a delicada tampa. Eu acertei. Repousado bem no centro, sobre uma almofadinha de cetim, um pingente de prata idêntico ao que estava no meu pescoço em forma de flor-de-lis. Ao virar a joia, jaz cravado "Kira, 1986", sendo a única novidade a data dos meus doze anos.
– Ainda não entendo, pápa – comento enquanto troco o pingente do ano anterior pelo atual presente que encaixa perfeitamente na gargantilha também de prata. – Se a passagem do tempo é importante, eu não deveria permanecer com um único pingente com a data do meu nascimento?
– É irrelevante quando você nasceu, Kira – diz meu pai com ares didáticos, enquanto nos aproximávamos da beirada da ponte – mas sim compreender que cada ano é um recomeço, uma oportunidade única para se reinventar. Deixe a angustia e os erros se diluírem no passado, levando seu peso junto com a flor-de-lis do ano anterior. Você não é mais a Kira que carregou aquele pingente. É a nova Kira, com um novo começo.
Aceno sinalizando meu entendimento, mesmo não tendo a real dimensão de suas palavras. Convoco toda a parca força que uma garotinha de doze anos consegue reunir e atiro o antigo pingente por sobre a ponte. A joia quica como uma pedra, até afundar nas águas do Tâmisa, junto com todos os xingamentos que me machucavam. O ritual estava completo, tendo as luzes da cidade e meu pai como testemunhas.
– Feito, pápa! Está diante de Kira, versão 86 – anuncio tentando minimizar a melancolia da nossa separação iminente. Dmitri não segura a gargalha que ecoa por toda a ponte.
Repetimos essas noites tão esperadas por toda a minha adolescência. Credito minha sobrevivência ao inferno solitário no internato a esses momentos especiais de cumplicidade. Acreditava que durariam para sempre, contudo, tudo mudou no primeiro ano do meu curso na Universidade de Oxford. Imaginava que, assim como meu pai pregava, me reinventaria num novo ambiente, conheceria novas pessoas e, finalmente, abandonaria a insegura Kira no passado. Todavia, a Kira, versão 93, deixou o sal das lágrimas da infância para mergulhar direto no sangue da desgraça provocada pela crua verdade. E hoje, mais uma vez, a versão 2011 de Kira, parte do sal da cidade de Salzburgo para descobrir a verdade sangrenta dos atentados na Fortaleza Vermelha. No cerne do sangue sempre encontro os engôdos de Dmitri. Quais serão as mentiras que encontrarei na Rússia?
Réquiem: Prece pelos mortos. Música cantada durante os velórios ou simplesmente para homenagear os mortos.
golubushka (fem.): palavra "pombinha" em russo, usada como expressão de carinho.
Ponte da Torre (Tower Bridge): ponte basculante e pênsil sobre o rio Tâmisa em Londres.
Foto: Margem do rio Salzach, na Áustria. Disponível em 03/09/2017: http://rh-destinations.com/es/europa/salzburgo/
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A Fortaleza Vermelha
VampiriTrês criaturas distintas habitando a Europa e agindo discretamente entre os humanos. Tudo estava em equilíbrio, até que um atentado terrorista faz com que as histórias estejam conectadas tão intimamente que, demônio, vampira e lobisomem terão que lu...