- Nina! Nina! Melina, acorda! - eu estava deitada em um galho de uma árvore e a Mari, minha irmã gêmea, já estava me enfernizando.
- Ai, Marina, o que você quer? - perguntei quase voltando a dormir.
- É sério Nina, acorda - abri os olhos. - Ótimo. A Júlia estava passando por aqui, aí ela me viu e pediu para você passar na casa dela que ela quer te dar umas coisas.
Júlia era a minha melhor amiga, e sempre que podia, me dava comida, roupas e algumas outras coisas.
Nossa posição social era meio difícil: Minha mãe, antes do sumiço das castas, era uma Três, e meu pai, um Sete. Sempre que dava, a família dela chamava ele para fazer uns trabalhos domésticos, então os dois acabaram se apaixonando, é óbvio que os pais dela não aceitaram bem isso. Meu pai e minha mãe decidiram fugir juntos e se casaram, assim mamãe virou uma Sete. Depois de quatro anos que eu e a Marina havíamos nascido, e as castas não existiam mais, mamãe adoeceu, papai gastou suas poucas economias para pagar os remédios, assim viramos "Oito". Poucos meses depois, mamãe morreu.
Então estamos vivendo como "Oito" há quinze anos. Há mais ou menos uns dez anos eu conheci a Júlia, escondi quem eu era e como vivíamos com medo de ela se afastar, e viramos melhores amigas. Quando ela tinha uns doze anos, descobriu como nós vivíamos e começou a nos ajudar.
Tudo o que eu tinha, devia a ela.
- Ahn, tá - respondi a Marina. - Cadê o papai?
- Ah, ele foi ali em outra rua, para ver se acha um lugar para assistirmos o Jornal Oficial.
- Ok.
Desci da árvore com um pulo fazendo Marina me olhar feio. Como eu tinha esquecido do Jornal Oficial? Na semana anterior o Gavril Fadaye havi dito que nesta semana haveria um anúncio especial.
Fui correndo, literalmente, até a casa da Júlia, que eu já sabia estando em qualquer lugar da cidade.
Cheguei em uns dez minutos, a casa ficava em uma parte da cidade não muito rica, mas nem pobre. Era um sobrado com as paredes beges e um telhado azul.
Bati na porta e imediatamente a Júlia atendeu. Ela começou a me puxar pelo cotovelo escada acima - que era muito estreita - até o quarto dela.
- Ei, calma aí, eu vim até aqui correndo. Estou exausta!
- Sua sedentária. Anda logo - ela respondeu em tom de brincadeira ainda me puxando.
Quando chegamos lá em cima ela mandou eu me sentar em sua cama.
- Você não sabe o que aconteceu, Nina!
- O quê? - perguntei super curiosa. Se não estivesse curiosa, não era eu.
- O CAM ME CHAMOU PARA O BAILE DE FORMATURA!
-AHHHHHHHHHH!
Começamos a dar pulinhos e gritar de mãos dadas. Esse era o último ano dela na escola e Cam, nas palavras de Júlia Alves, era o mais popular, bonito, gente boa e simpático garoto do mundo!, eu sabia que estava exagerando, mas mesmo assim fiquei feliz por ela.
Depois, acabamos caindo no chão de tanto rir.
- É melhor eu me arrumar que daqui a pouco ele chega.
Entendendo a indireta, me levantei.
- Ok, estou indo então.
- Espera, eu tenho algumas coisas para você - ela abriu seu armário branco e tirou uma sacola gigantesca. - Eu estava fazendo um limpa no meu armário e achei umas coisas para você e para sua irmã - Júlia tirou da sacola um vestido creme de saia rodada e alcinhas, definitivamente, o mais lindo que já tinha visto. - Olha esse. Nem serve mais para mim, e como você é magrinha vai ficar maravilhoso! Aliás, vai ficar mais linda do que já é! - Eu não me achava nem um pouco linda. Eu tinha olhos verdes, sardas abaixo deles e um cabelo castanho escuro ondulado e longo. Sem contar que meu quadril não era lá minúsculo.
Eu estava totalmente embasbacada. Ela já dar aquele vestido para mim?
Enquanto isso, Júlia continuava me mostrando tênis, moletons, calças, blusinhas...
- Espera ai! Você vai mesmo me dar aquele vestido?
- É claro, sua boba! Talvez você precise logo. Ah! Dentro da sacola também tem uns pães, biscoitos e eu consegui um pouco de argila para você!
Eu gostava de esculpir em argila quando estava muito estressada, pensativa, triste ou quando precisava relaxar um pouco. Eu era até que boa nisso.
- Obrigada, Júlia! Não sei o que seria de mim sem você - eu disse dando um abraço nela.
- Eu sei: nada!
Rimos e fui embora mais rápido do que cheguei, voltando a árvore. Marina e seu cabelo nos ombros me esperavam.
- Demorou, hein? O que tem na sacola?
- Argila, umas roupas, comida...
- Hum, legal - ela disse me cortando. - Agora vamos, papai conseguiu um lugar para vermos o Jornal.
- E para dormir?
- Acho que sim.
É claro que sim, ele sempre conseguia.
Eu e Marina fomos andando por umas cinco ruas até um bar cheio de caras bebendo em mesas e cadeiras amarelas. Vi papai sentado em uma das cadeiras do balcão de madeira olhando para a TV a sua frente. Nós nos aproximamos dele.
- Ah meninas! Vocês demoraram -ele exclamou - estava preocupado.
- É que estávamos um pouco longe, papai - menti dando um abraço nele.
A verdade é que eu e a Marina tínhamos ido que nem umas lerdas.
- Tudo bem. O proprietário deixou passarmos duas noites no quarto vazio se eu tomasse conta daqui essa noite.
- Hmmm - dissemos eu e Mari ao tempo, nos olhando.
- Sentem-se, o Jornal vai começar.
Fizemos isso, e como se visse sua deixa, o Jornal Oficial de Illéa começou.
- Boa noite, Illéa! - disse Gavril, ele já estava muito velho. - Hoje temos um anúncio especial, e como coincidiu de todas as vossas altezas estarem aqui, aproveitaremos esta oportunidade - no estúdio de gravação estava a rainha Eadlyn e o rei Eikko, os senhores Schreave, a princesa Alice e o príncipe Osten, o príncipe Ahren e a rainha da França, sua esposa, Camille, além do príncipe Kaden. Uau, isso não acontecia há um bom tempo. Gavril continuou a falar: - Vosso querido príncipe Kaden - querido só se for pra você, porque para mim não passa de um besta real, pensei. - estará completando 23 anos em breve. Vendo o seu sucesso com os outros integrantes da família real, vosso príncipe - Ah não, não é o que estou pensando... - decidiu anunciar sua Seleção!
- O QUÊ? Esse príncipe é o sonho de qualquer garota! - disse Marina pulando da cadeira e dando palminhas, atraindo a visão de todos. - Eu quero me inscrever!!!
- Marina você tá doida? - perguntei. - A chance de entrarmos é Z-E-R-O!
- Ai, Nina! E daí? Eu tenho certeza que vou entrar!
- Shiiiu! - papai falou. - Voltem a ouvir.
- Levando em conta a idade de vossa alteza, a Seleção irá de garotas com 18 à 23 anos - Gavril continuou.
- Melina! Nós temos 19! - tampei a boca dela com a minha mão para não sair mais besteira.
- As garotas de todo o reino terão treze dias para enviarem suas fichas. Daqui a duas semanas, no início da primavera, iremos anunciar as Selecionadas! Agora vamos aos acontecimentos.
Depois disso não ouvi mais nada. Simplesmente levantei e fui direto para o quarto, me guiando por placas.
Era todo cinza, tinha três camas, duas uma ao lado da outra, apenas separadas por um criado-mundo com um abajour em cima. A outra cama ficava na parede oposta, no vão das duas outras camas, além de um banheiro e uma janela. Aquele era um dos melhores quartos em que eu já dormira.
Tomei um banho e coloquei uma calça de moletom cinza e uma blusa de manguinhas da sacola de Júlia e me deitei. Não sei por quê, mas comecei a chorar e peguei no sono.《》
Eu estava em um jardim florido, com mamãe. Estávamos brincando, eu era mais nova. De repente, ela caiu e fui ajudá-la a se levantar, então tudo começou a ficar cinza e alguns caras vestidos de preto começaram a puxa-la para longe de mim. Comecei a chorar e gritar por ela, e uma mão com uma luva preta e grossa tampou minha boca. Tudo ao meu redor começou a se desmanchar em sangue.
Então acordei, gritando e chorando mais ainda. Eu havia tido um pesadelo. Mari estava me abraçando e murmurando "calma, já passou", passei meus braços em torno dela e continuei a chorar. Nessa hora, papai abriu a porta de supetão, ele estava com cara de preocupado, Mari com uma cara pior ainda, falou:
- Ela estava tendo um pesadelo. Estão se tornando mais frequentes.
Eu sabia o que ela queria dizer sobre aquilo e com aquela cara. Ultimamente eu andava tendo muitos pesadelos, e da última vez que isso aconteceu, tivemos a mudança mais drástica de nossas vidas: Mamãe morreu. Poderia ser só uma coincidência, mas eu suspeitava que não.
Papai só chegou mais perto, me abraçou e fez carinho no meu cabelo enquanto eu continuava desabando em choro. Percebi que eles estavam se olhando, se comunicando com o olhar.
Depois de um tempo eu acabei adormecendo, mas quando papai e Mari saíram de cima da cama eu despertei, mas continuei de olhos fechados.
- Papai, eu estou preocupada com a Nina. Ela nunca acordou desse... desse jeito.
- Ela está sobrecarregada, Mari. Vive tentando te colocar na linha, arranja roupa, comida... Era eu que devia estar fazendo isso! A Nina passa o dia procurando emprego, às vezes some e a gente não sabe para onde ela vai. O cansaço e os sonhos são só resultado disso!
- Mas pai, a nossa vida sempre foi assim, e de um mês para cá eles estão piorando.
- Não sei, Marina. Talvez dessa vez foi por causa da Seleção. A Melina não é das pessoas que gostam de mudança.
- Como assim, pai? Ela nem quer participar, prefere ficar nessa vidinha horrível a tentar ficar alguns dias num palácio, isso se for escolhida.
- Talvez... ah, não sei - ele soltou um suspiro. - Mas vou tentar convencê-la, vou arrumar os formulários, e você vai me ajudar a convencer a Nina. Eu só quero ter a chance de dar uma vida melhor para vocês. Faço tudo o que posso, mas não é suficiente.
- Você faz mais do que pode, papai. Nós te amamos muito.
Depois disso ouvi um pequeno soluço e passos ecoaram pelo quarto, papai tinha voltado ao "trabalho". Mari veio até a minha cama e se ajeitou ao meu lado.
Quando éramos menores, ela fazia isso quando sabia que as coisas não estavam indo bem.
Era exatamente o que estava acontecendo. Nada estava indo bem. Eu não aguentava mais aquela vida. Nunca tinha garantia de nada. E se amanhã não tivermos onde passar a noite? E se, no dia seguinte, não tivermos o que comer? E se, em alguns dias, eu não estiver mais viva? E se tudo for sempre assim?
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Oito
FanfictionMelina vive nas margens da sociedade de Hondurágua, numa vida onde o melhor que ela pode fazer é tirar proveito de qualquer chance que imaginar. Com uma irmã gêmea e um pai, todos dão duro para sobreviver à consequência de sua geração de casta Oito...