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Estou vestindo uma malha azul marinho por baixo de manchadas calças jeans largas, uma grande camiseta de baixo, um suéter de gola alta, um moletom com capuz que eu roubei do armário de meu pai, e minha jaqueta, com uma surpresa para Cassie enterrada no fundo de meu bolso esquerdo. E mitenes. Não é o que você veste para um velório.

Eu digo à Jennifer que eu não estarei em casa para o jantar por que eu tenho que fazer uma pesquisa na biblioteca com estúpidas fontes primárias, o que significa que eu tenho que usar um livro de verdade que provavelmente foi tocado por uns cem mil estranhos carregando só Deus sabe que cepas de vírus mutantes.

E uma mentira muito ruim, eu tenho certeza que ela vai explodir comigo por isso, mas ela está cheia até os cotovelos com papel machê ajudando Emma a fazer um templo grego.

Meu carro estaciona na biblioteca. Eu corro os dois blocos para a igreja, mantendo minha cabeça abaixada e meu cabelo no meu rosto. O sol se pôs uma hora atrás. O ar frio sopra com o cheiro de folhas queimadas e coisas mortas empilhadas em uma fogueira. Decorações vermelhas-e-verdes de Natal estão penduradas nos postes da rua e em todas as lojas.

Eu posso sentir as sombras saindo da escuridão, vindo para mim. Na última vez que estive trancafiada, o psiquiatra do hospital tinha me feito desenhar um contorno real do tamanho de meu corpo. Eu escolhi um gordo lápis-cera da cor da pele de elefante ou de uma calçada com chuva. Ele desenrolou o papel no chão, papel de açougueiro que se enrugou quando eu me debrucei sobre ele. Eu queria desenhar minhas coxas, cada uma do tamanho de um sofá, em seu tapete. Os rolos na minha bunda e no meu intestino resmungariam sobre o chão e respingariam contra as paredes; meus seios, bolas de praia; meus braços, tubos de massa de biscoito escorrendo pelas costuras.

O doutor teria ficado horrorizado. Todo o seu trabalho, acabado, no loop infinito de lápis-cera cinzameleca. Ele teria chamado meus pais e haveria mais consultas (corrida de fita métrica, milhares de dólares do seguro indo embora), e ele teria ajustado meus remédios novamente, uma pílula para fazer meu própriovigor maior, outro para deixar minha loucura menor.

Então, eu desenhei uma borrada versão de mim, uma fração do meu verdadeiro tamanho, dedos das mãos e dos pés contados, pedras em minha barriga, brincos bonitos, rabo de cavalo.

Ele puxou outra folha grande de papel do rolo e me fez deitar nele para que ele pudesse desenhar o meu exterior, em tamanho real. O lápis-cera abraçou apertado meus ossos e isso me fez tremer. Ele não se atreveu a se aproximar do interior de minhas coxas. Ele não especulou sobre o tamanho ou a condição de meus órgãos internos.

Eu peguei uma revista da mesa enquanto ele colava os desenhos na parede. Era uma revista de armas, estrategicamente colocada para enviar faíscas pelo ar que poderiam pegar fogo e queimar/limpar toda a loucura de seus pacientes pacientes para fora.

Mesmo as pessoas feias na revista eram bonitas.

— Olhe aqui, — ele disse. — Que diferenças você vê, Lia?

A verdade? Ambas eram horríveis fantasmas cerosos no papel de açougue. Eu sabia o que ele queria ouvir. Ele não podia me ver ficar doente. Ninguém pode. Eles só querem ouvir que você está saudável, se recuperando, levando um dia de cada vez. Se você está preso a uma doença, você deve parar de gastar o tempo deles e simplesmente morrer.

—Lia? — ele perguntou novamente.

Os $$$$ estavam indo embora.

Eu recitei minhas falas. — O desenho que eu fiz está inchado e irrealista. Eu acho que tenho que trabalhar na minha auto-percepção um pouco mais.

Ele sorriu.

Eu descobri que meus olhos estavam quebrados muito antes disso. Mas naquele dia eu comecei a temer que as pessoas responsáveis não pudessem ver, tampouco.

Eu paro em frente à floricultura. No segundo andar, as luzes estão acesas no meu antigo estúdio de dança. Passei uma vida inteira olhando para os espelhos lá em cima. Eu me flexionava e saltava, e fazia uma reverência e uma curva; um bombom, um cisne, uma donzela, uma boneca. Depois do ensaio eu roubaria o livro de anatomia de minha mãe e ficaria nua no banheiro, traçando os onde eles se diluíam em resistentes fitas de tendão ancoradas nos ossos, músculos que nadavam sob minha pele, procurando pelo lugar.

A menina refletida de volta na janela à minha frente tem bicos de papagaios crescendo para fora de sua barriga e cabeça. Ela tem o formato de uma salsicha do café da manhã sustentada por pernas de cabo de vassoura, seus braços são feitos de galhos, seu rosto borrado com uma borracha. Eu sei que isso sou eu, mas não sou eu, não de verdade. Eu não sei com o que pareço. Eu não me lembro como olhar.

Faces cinzas se amontoam na folhagem vermelha. Os fantasmas querem me provar. Suas mãos se contorcem para fora, os dedos abertos. Eu ando rapidamente, movendo-me para fora do alcance de suas sombras pegajosas. Quando eu passo sob um poste, a lâmpada estala, e eu sinto cheiro de açúcar queimado. Dela. Dela.

Eu corro o resto do caminho até o velório, um passo à frente dos ganchos de ferro que ela está lançando.

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Obs: Onde tiver essa marcação ["----"] em negrito significa que a personagem esta apenas pensando e não falando.

A garota de vidroOnde histórias criam vida. Descubra agora