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Eu sou quase uma garota de verdade enquanto dirijo para casa. Eu fui a uma lanchonete. Eu bebi chocolate quente e comi batata frita. Falei com um cara por um tempo. Ri algumas vezes. Um pouco como patinar no gelo pela primeira vez, vacilante, mas eu fiz.

Quando eu entro em casa, os sussurros começam novamente...

... ela ligou.

trinta e três vezes.

você não respondeu.

corpo encontrado em um quarto de motel, só.

você a deixou sozinha.

devia devia devia ter feito qualquercoisatudo.

você a matou.

Tento os espremer, concentrando-me em voz alta. Estou subindo as escadas. Estou entrando no meu quarto. Eu -

você a deixou só.

- cala a boca, estou jogando minha bolsa em cima da cama. Estou vestindo meu pijama. Eu preciso do meu robe, acho que o pendurei -

Abro meu armário.

Cassie está encostada na pilha de caixas. Ela inclina a cabeça para um lado e acena. — Tendo um bom tempo?

Eu bato a porta com tanta força que a moldura racha.

Ela quase foi a um médico dois anos atrás. O comer/vomitar/comer/vomitar/comer/vomitar não a deixava magra, a fazia chorar. O seu treinador a escalou para o time de futebol JU{15} porque ela não conseguia correr o bastante. A professora de teatro disse a ela que ela não estava — brilhando" o bastante, então ela não conseguiu o papel principal na peça.

— Eu não posso parar, mas não posso continuar, — ela me falou. — Nada funciona.

Eu a apoiei totalmente. Procurei nomes de médicos e clínicas. Eu a enviei e-mails com sites de recuperação.

E sabotei cada passo.

Eu disse a ela quão forte ela era e quão saudável ela ficaria e quão orgulhosa eu estava dela e eu deixei cair quantas calorias eu comi naquele dia, o número mágico na balança, o número de centímetros ao redor de minhas coxas. Nós fomos ao shopping e eu tive certeza de que usaríamos o mesmo provador assim ela poderia ver meu esqueleto brilhar na florescente luz azul. Fomos para a praça de alimentação e ela pediu batatas fritas queijosas, nuggets de frango, e uma salada. Eu bebi café preto e lambi o adoçante artificial na palma da minha mão. Ela me pediu para vigiar a porta enquanto vomitava o almoço no banheiro sujo do shopping.

Nos demos às mãos quando descemos o caminho de pão de gengibre para a floresta, sangue escorrendo de nossos dedos. Dançamos com bruxas e beijamos monstros. Nos transformamos em garotas de vidro, e quando ela tentou sair, a puxei de volta para a neve porque eu estava com medo de ficar só.

Eu fico lendo durante a meia-noite na sala familiar esperando que Cassie se canse e vá embora. No momento em que estou pronta para me dirigir ao porão ["paraqueimar meus músculos da perna até o sol nascer"] para me exercitar moderadamente durante vinte minutos então poderei dormir melhor, papai vem descendo a escada amontoado e entra na cozinha. Eu ouço a geladeira abrir, e então um longo borrifo de creme de chantilly. A geladeira fecha e ele se dirige em minha direção.

— Lia?. — Papai está vestindo um robe azul-e-verde-quadriculado mais velho que eu, calças de pijama de flanela, e uma camisa cinza que diz DEPARTAMENTO

ATLÉTICO. Seus pés estão descalços. Seus cabelos muito longos, mais cinza que pretos, estão arrepiados para todo lugar. Ele parece com um mendigo pedindo por moedas na esquina, mas invés de uma lata vazia, ele está segurando um prato de torta enterrada sob um monte de creme de chantilly. Os dois últimos pedaços da torta de abóbora do jantar do dia de Ação de Graças, eu aposto.

— O que você está fazendo? — ele pergunta. — Você deveria estar dormindo.

Eu seguro o mais recente trabalho de gênio do Neil Gaiman. — Eu tinha que ver o que acontece no final. E você?

Ele cuidadosamente se senta na cadeira reclinável, o prato de torta em seu colo, e dá a primeira mordida. — Eu continuo sonhando sobre a minha pesquisa e acordando

Jennifer por que eu fico socando o colchão. — Ele franze as sobrancelhas. — Eu nunca deveria ter concordado em escrevê-la.

— Por que não? — eu pergunto.

Ele dá outra mordida e mastiga. ["O cheiro se enrosca ao meu lado, doce doce de abóbora, creme de chantillyderretendo em minha língua"] Essa torta tem quase uma semana, uma mancha de mofo está crescendo na crosta, o deixará doente.

Ele limpa um pouco de chantilly de sua boca. — Eu não fiz uma pesquisa preliminar suficiente antes de escrever a proposta. Assumi que encontraria muitas fontes primárias e fiz muitas promessas. Agora, estou empacado.

— Diga a sua editora, — eu digo. — Diga a ela que cometeu um erro e se ofereça para escrever um livro diferente.

— Não é tão simples. Ele pega outro pedaço enorme de torta.

Assistir a comida entrando em sua boca, suas mandíbulas trabalhando como uma máquina de moagem e as engolidas ruidosas, instala um pânico dentro de mim. Eu passo meus dedos ao longo das bordas da capa do meu livro, empurrando os cantos até machucar.

— Você costumava dizer que as coisas sempre parecem melhores de manhã, — eu digo. — Talvez, você apenas deva voltar para a cama.

— Esta é uma coisa de adulto, Lia, um pouco mais complicado que isso. Mas não é nada com que você tenha que se preocupar.

["Por que eu ainda sou uma garotinha que acredita em Papai Noel e na fada do dente e em você."]

Ele atrapalha-se no bolso de seu robe atrás de seus óculos de leitura. — É o meu laptop por ali?

Aponto para a estante de livros acima da televisão.

— Ah. — Ele se levanta e atravessa a sala. — Por que não termina isso por mim? — ele diz enquanto enfia a torta (545) na minha cara.

— Eu não quero. — A empurro de volta. — É repugnante.

Ele franze as sobrancelhas. —Não vai te machucar. É apenas torta.

Ele mantém o prato de torta a centímetros de meu rosto. Se eu bater em sua mão, a torta respingaria contra a unidade de entretenimento e deslizaria na tela da televisão.

— Não queremos que sua mãe esteja certa sobre isso, queremos? — ele pergunta.

— Certa sobre o quê? — eu pergunto.

— Sobre você estar escorregando de volta aos seus velhos hábitos. Os ruins.

Eu me levanto, forçando-o a dar alguns passos para trás e me dar algum espaço. —Estou cansada, — digo. —Vou para a cama.

Meus pés na escada acarpetada não fazem nenhum som. Eu abro a porta vagarosamente.

Cassie se foi. O quarto cheira um pouco como uma padaria no Natal, mas ela não está aqui. Eu ponho o computador para tocar música country por que ela odiava, e rastejo para a cama.

Quando eu começo a cochilar, a música para.

Cassie se senta ao pé da minha cama, parecendo mais forte, mais saudável que antes, como se estivesse pegando o jeito de ser uma fantasma. Ela afaga o contorno de minha perna debaixo dos cobertores e diz, — Vá dormir. Vai ficar tudo bem.

Não há aranhas à vista, sem criaturas amigáveis para fazê-la ir embora. Eu quero dizer para ela me deixar em paz, mas minha boca não abre.

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Obs: Onde tiver essa marcação ["----"] em negrito significa que a personagem esta apenas pensando e não falando.

A garota de vidroOnde histórias criam vida. Descubra agora