Antes de me rotularem como monstro, peço que, pelo menos inicialmente, tentem não me julgar.
Afinal, até os piores criminosos – assassinos, corruptores e corrompidos – tiveram no tribunal o direito da dúvida.
Não que isso importe no meu atual estágio. Quando terminarem de ler este relato, notarão (e entenderão por que) o que possam ou não pensar a meu respeito, ou a respeito de minha família, não mudará, em absolutamente nada, meu destino.
Contudo, cultivem o bom senso e leiam com mente aberta o legado que estou deixando por escrito – sim, porque as palavras o vento leva, mas o que está grafado no papel, a impiedade dos anos não consegue apagar.
Meu nome é Eduardo Bernardi, e tenho 45 anos. Nasci e cresci no interior, e, também no interior de São Paulo, estruturei minha vida: casei-me com minha primeira namorada (que, porém, não fora a primeira mulher com quem tivera relações sexuais), formei-me no colégio com notas boas, cursei Filosofia na USP, depois enveredei para duas pós-graduações – em Antropologia e, finalmente, em Psicanálise, área em que escolhi atuar profissionalmente, abandonando as salas de aula da universidade e passando a atuar como uma espécie de conselheiro de mentes aparentemente normais que, no entanto, não sabem que funcionam "fora da caixinha" e que precisam de minha ajuda para descobrir que possuem traumas que devem ser tratados e superados.
E foi nisso em que trabalhei por longos 17 anos: dia após dia, dedicava-me a ouvir, e, às vezes, intervir, relatos de pessoas mais diferentes possível, desde adolescentes que ansiavam por matar os pais e transar com a professora de Inglês, até mulheres neuróticas, homens adúlteros, e jovens com pensamentos suicidas.
Um cotidiano repleto de cenários de guerra muda entre pulsões que emergem do mais profundo recanto de nossa mente, e colidem com barreiras que a vida nos ensina a criar para nos tornarmos aceitos em nosso seio familiar, no trabalho, na roda de amigos.
Para muitos pode parecer um trabalho enfadonho, mas não é. Foi graças a meus 17 anos como analista que conseguimos quitar nossa primeira casa, pagamos bons colégios para nossa única filha, e, mais recentemente, compramos uma casa relativamente confortável em um condomínio de classe média na cidade em que sempre moramos.
Ah, sim. Ia me esquecendo. Não percorri esse caminho sozinho; Sílvia, minha esposa, com quem estou casado há 30 anos, dividiu esses momentos comigo. Pensando bem, e puxando pela memória, nossa relação aparentemente estável sempre consistiu em três etapas: a primeira, quando pensávamos e cultivávamos um sonho juntos; a segunda, quando saíamos à procura de formas de realizar esses projetos; e a terceira, quando, finalmente, atingíamos nosso ideal.
Era como se fossem etapas de uma receita de bolo: juntos, comprávamos os ingredientes e fazíamos a massa; colocávamos juntos o bolo no forno para assar. O problema estava na etapa final, porque Sílvia costumava sempre ficar com o maior pedaço, deixando as migalhas e a louça para mim – ou seja, as contas para pagar.
Antes que pensem que minha mulher é do tipo encostada, corrijo (novamente, cuidado para não julgarem minha Geografia antes da hora!); Sílvia é gerente de marketing em uma multinacional francesa instalada em Campinas, cerca de 50 quilômetros de onde moramos. Ganha mais do que eu e tem uma rotina que faria qualquer feminista vibrar de alegria.
O fato é que nutríamos um acordo mudo mediante o qual eu ficava com as contas da casa, e Sílvia empregava seu dinheiro em projetos pessoais (digo, dela) e, vez ou outra, em alguma extravagância de nossa filha, Nataly.
Como qualquer adolescente que se preze, Nataly repentinamente transmutara-se de uma adorável garotinha para um ser estranho, que abandonara o rosa e adotara o preto, pintara os cabelos e unhas, e insistia em me apresentar os mais diferentes tipos de namorados – tão ou mais estranhos do que ela.
Mas eu era bem-sucedido em minha profissão, tinha a agenda cheia e vários candidatos a paciente na fila de espera. Ou seja, eu não podia reclamar. E, realmente, eu não reclamava.
E, então, o fatídico dia de 21 de agosto chegou. E, no auge de meus 45 anos, 17 anos de profissão e 20 anos de um casamento sólido, que me renderam uma adorável e enigmática filha de 16 anos, descobri que minha vida mudaria. Para sempre.
É aqui que começo meu verdadeiro relato.
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O Monstro
Mystery / ThrillerO que você faria se soubesse que tem somente sete dias de vida, e tivesse acabado de descobrir que sua esposa é infiel? Meandros da mente humana e o potencial destrutivo que todos possuímos são abordados em "O monstro", publicado exclusivamente no...