A dor que me acometia era imensurável. Sentia como se eu cortasse a pele do meu braço com um pedaço pontiagudo de vidro; o lado afiado penetrando a carne, abrindo caminho pela pele, deixando passar o sangue. O ardor do corpo sendo violado, deixando exposto tudo o que há por dentro.
- Que horas são? – perguntei ao vazio, erguendo a cabeça.
A sala havia ficado totalmente escura, sinal de que o sol já havia dormido do lado de fora. Eu perdera por completo a noção de quanto tempo eu havia ficado imerso no torpor causado pelas memórias.
- Você parecia estar em transe – disse a velha, emergindo das sombras. Eu quase não conseguia vê-la; apenas o azul de seus olhos brilhava, destacando-se na escuridão, como um gato preto que, sorrateiramente, se esgueira pelas frestas à procura de abrigo.
- Você ainda está aí? – perguntei, esfregando os olhos.
- Ficarei contigo até o final – ela disse. – Pelo menos, pode dizer que tem uma amiga.
- Amiga? Você só me trouxe desgraça! – eu falei, rindo com ironia.
A velha saiu das sombras e se aproximou.
- E então? – falou, parando diante de mim. – Não vai continuar?
- Do que está falando?
Ela sorriu com doçura.
- Não vai continuar a viajar pelo seu passado?
- Eu não posso – disse, encolhendo o corpo e escondendo a cabeça entre as pernas.
- Não seja infantil – ela ralhou. – Já é um homem adulto. E não tem muito tempo.
"Tempo? Eu havia me esquecido".
- Você me que horas eram – ela disse. – Faltam cinco minutos para meia-noite. Seu tempo está acabando.
Desviei o olhar para o teto.
- Você deixou o monstro sair. Agora, está na hora de confrontá-lo.
- E se eu não quiser? – perguntei, num murmúrio.
- Então, você nunca saberá quando ele nasceu.
- Ele?
- O monstro. Seu monstro.
Ela estreitou a visão e, novamente, uma sensação estranha tomou conta de meu corpo.
- Seus olhos – eu disse. – Seus olhos azuis; eles são familiares. Eu te conheço, não é? Você, de algum modo, é real?
A velha sorriu e, novamente, emergiu no escuro. Meu corpo estava dormente e sentia o coração bater acelerado. Pressionei o peito, sentindo uma dor aguda que parecia me rasgar por dentro.
"Vou morrer; estou morrendo", pensei, quase entrando em desespero.
Rapidamente, as forças iam deixando meu corpo. Minha mão estava dormente e eu não conseguia sentir meus pés.
"Deus, me ajude", clamei, em pensamento.
Soltei o corpo, deixando-o cair contra o chão empoeirado. Eu enxergava unicamente o teto e, gradualmente, tudo foi ficando em silêncio; um silêncio mortal.
*****
Oito anos e dez meses e dezessete dias. Era minha idade precisa quando tudo ocorreu. Juro por Deus que tentei esconder essa lembrança nas entranhas de minha mente, e, por muito tempo, eu consegui. Mas, como todo animal selvagem que é mantido muito tempo trancafiado, a brecha para a liberdade pode ser o pretexto ideal para deixar toda a fúria escapar sem culpa.
Em todos os meus anos como terapeuta, eu sempre trabalhei para conduzir meus pacientes pelo caminho que levava ao autoconhecimento; muitas vezes, quando essa hora chegava, eles eram acometidos por uma catarse incontrolável, que marcava o fim de uma vida no limbo e o início de uma nova existência, na qual era preciso conviver com seus demônios – contudo, sabendo que eles existiam, a forma que tinham e como dominá-los.
Mas aquela era a minha catarse; minha hora solitária de enfrentar meus demônios e encarar o monstro que eles geraram.
À medida que o torpor dominava meu corpo, as imagens se tornavam cada vez mais nítidas. Eu estava diante do menino de oito anos e dez meses, assustado, correndo para o quarto antes que seu pai transpassasse a porta.
Naquele dia, havia algo diferente; uma atmosfera densa, pegajosa. Algo ruim, muito ruim, iria acontecer.
Corra para seu quarto e não saia de lá - advertiu minha mãe. – Não saia de lá por nada. Eu e seu pai iremos apenas conversar.
Não, seu sabia que não era aquilo. Não era uma conversa. O que minha mãe desejava naquele dia? Pedir a separação? Ela teria sido capaz? Como seria nossa vida se ela tivesse deixado o casamento para trás?
Eu era muito menino; o que poderia ter feito? Como todo filho, obedeci e corri mais rápido que minhas pernas conseguiram, fechando-me no meu quarto. Tão logo girei a maçaneta, ouvi os passos do meu pai na sala. Ele não dizia nada, mas eu podia sentir sua fúria à distância.
Cadê o menino? – ele perguntou, com voz firme.
No quarto. Tomou banho e mandei que ficasse lá. Precisamos conversar – falou minha mãe.
E Clarice?
Também está no quarto, brincando com as bonecas.
Ouvi um barulho surdo, como de algo caindo; em seguida, um barulho novamente, porém, mas forte.
O que está fazendo? – minha mãe perguntara.
Eu te disse que iria te mostrar o que era ser homem – meu pai respondeu. Sua voz não era de um ser humano; era de um animal. De um monstro.
Escutei outro impacto e o barulho do sofá sendo arrastado.
Não! – minha mãe gritara.
Cala boca!
Eu pressionava as unhas contra a madeira da porta; a ponta dos meus dedos suava e meu coração batia acelerado. O que estava havendo? Ele estava machucando minha mãe.
Os protestos dela haviam cessado, transformando-se em parcos gemidos.
Sem pensar, girei a maçaneta e escancarei a porta; o medo havia sumido e minhas pernas se mexiam em direção à sala.
Estarrecido, congelei os movimentos diante da cena; meu pai segurava minha mãe pelos braços, prendendo-a, imóvel, sobre o sofá. A roupa dela estava no chão; ele também estava seminu e arfava como um animal.
O quê?... – eu murmurei.
Como se libertado de um transe, meu pai afrouxou os braços e,girando o corpo, afastou-se de minha mãe. Passou a mão pela boca, limpando o sangue; por que sangrava? Estava machucado? Ela havia batido nele?
Pensei que ele iria me bater, mas meus pés se negavam a se mover. Eu estava preparado para o pior. Ainda mantendo os olhos fixos em meu pai, em pé, diante de mim, olhava, de soslaio, para minha mãe, que, sentada no sofá, cobria os seios nus e me olhava com espanto.
Enfim, meu pai deu-me as costas, pegou sua camisa que estava estendida no chão e, cabisbaixo, caminhou para seu quarto e se fechou lá. Como um bicho que protege sua cria, minha mãe lançou-se sobre mim, me abraçando e chorando copiosamente. Segundos depois, senti meu corpo amolecer; meus músculos afrouxarem até tombar, desacordado, em seu colo.
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O Monstro
Mystery / ThrillerO que você faria se soubesse que tem somente sete dias de vida, e tivesse acabado de descobrir que sua esposa é infiel? Meandros da mente humana e o potencial destrutivo que todos possuímos são abordados em "O monstro", publicado exclusivamente no...