Capítulo 1

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"Desde que alberguemos uma única vez o mal, este não volta a dar-se ao trabalho de pedir que lhe concedamos a nossa confiança".

Franz Kafka

PRIMEIRO DIA - 21 DE AGOSTO   


Não era a primeira vez que eu presenciava um paciente em catarse. Contudo, aquela catarse, em especial, havia me deixado muito feliz. Dona Beatriz era uma mulher de 55 anos, casada, mãe de quatro filhos. Chegara a meu consultório há três anos com um problema corriqueiro: não sentia atração sexual pelo marido havia 20 anos. Temia (e isso lhe causava pesadelos) ser uma homossexual não resolvida.

Desde então, foram inúmeras sessões durante as quais percorremos sua infância, falamos sobre fatos de sua adolescência, juventude, casamento, vida a dois; ela contou, com detalhes, sobre a emoção de sentir e ver cada um dos seus três filhos virem ao mundo. Mas nada explicava o porquê da frigidez que sentia há duas décadas.

Segundo dona Beatriz, o marido, chamado Roberto, demorou a entender (e se acostumar) o fato de a esposa não desejar mais ter relações com ele. Por algum tempo, ela conseguia fingir algum tipo de prazer; depois, nem isso. E tudo se tornou insustentável. Porém, gradualmente o marido foi aceitando sua nova condição de filho ou irmão mais velho, e passou a direcionar mais energia aos jogos de bocha de final de semana, ou às pescarias. Isso voltou a dar serenidade à vida do casal, que, há cinco anos, curtia a chegada da primeira netinha.

Contudo, naquele dia, 21 de agosto, dona Beatriz me ligara logo cedo, às sete da manhã, dizendo que estava se sentindo profundamente angustiada, e que tinha finalmente descoberto seu problema. Às quatro da tarde, a mulher entrou em meu consultório em polvorosa, e desembestou a falar sobre uma lembrança escondida há várias décadas, e que viera à tona pela manhã.

Foi mais ou menos assim; ela estava arrumando a velha edícula do fundo de sua casa e jogando algumas coisas fora. Analiticamente, isso é um bom sinal; nos despegarmos do que é antigo, e desejarmos o novo. Mas teve mais. Numa caixa de madeira antiga, escondida no fundo de um armário igualmente velho, ela encontrara uma pilha de fotos de sua infância; várias fotos preto-e-brancas nas quais ela e sua irmã mais nova apareciam ao lado do pai, um sujeito calado que ganhava a vida roçando o quintal das famílias mais abastadas. E, então, como uma tempestade de verão, o céu desabou.

Numa foto em particular, a menina Beatriz usava um vestido branco de listas vermelhas. Tinha cerca de seis ou sete anos e estava com a irmã, na porta de entrada da casa dos pais. Entre as duas, o pai, de chapéu, exibia um raro sorriso.

- Foi nesse dia, doutor... nesse dia... – ela me contou, em prantos, horas depois – que meu pai me molestou. Agora, eu me lembro como se fosse hoje! Eu usava aquele vestido e foi logo após o almoço. Minha mãe havia saído com minha irmã para busca roupas para costurar, e eu fiquei com ele. Então, ele me pôs no colo e... e...

A mulher explodiu num choro incontrolável. Estendi a caixa de lenço em sua direção, e ela pegou um punhado.

- Eu estava usando aquele vestidinho. Branco com listas vermelhas. Minha mãe quem vez – voltou a falar, mais calma. – Então, ele ergueu minha saia e... com o dedo... ele... Que vergonha contar isso ao senhor!!!

- Não se preocupe, dona Beatriz – eu disse, exibindo um sorriso amável. – Durante todos esses anos, formamos uma espécie de laço invisível que permite que a senhora diga coisas que não falaria a mais ninguém. Por outro lado, eu posso ouvi-las com toda serenidade, e dar à senhora a certeza de que nada do que falar sairá daqui. Não foi assim que agimos até hoje?

O MonstroOnde histórias criam vida. Descubra agora