SEXTO DIA - 26 DE AGOSTO
Quando o ponteiro do meu relógio indicou meia noite, explodi num choro incontrolável. Eu estivera por duas horas sentado no piso frio do banheiro, exatamente no local em que o corpo de Flávia deveria estar – ou onde eu achei que ele estava.
O vira-lata dormia deitado junto de minhas pernas; sua cabeça repousava sobre minhas canelas e ele parecia relaxado, totalmente alheio à minha aflição.
"Mais 24 horas. Um dia para tudo chegar ao fim", pensei.
Certa feita, havia assistido, em um programa de tevê, a uma matéria sobre um doente desenganado que se recuperara de um câncer que, quando se está à beira da morte, tudo o que se deseja e se pensa é no tempo. Em ter mais tempo; em aproveitar melhor esse tempo, fazendo o que nunca se fez, ou o que deveria ser sido feito. Empurramos nossos projetos com a barriga, certos de que o dia nascerá novamente e que teremos outra oportunidade. Mas, quando o destino nos carimba um prazo de validade, essa perspectiva sofre uma revolução. Tudo se torna urgente; do que era sólido se converte em fluido, o certo em incerto e o impossível ganha contornos reais de algo exequível.
Afaguei o cão, pensando no que ele estava fazendo no hotel. Mais do que isso; como ele estaria ali? Como havia entrado sem ser visto, e por que se dirigira ao meu quarto?
Eu havia me convencido de que meu problema no coração fora prova irrefutável de que estava com os dias contatos, conforme prognosticara aquela velha. E isso, logicamente, me abriu uma nova perspectiva sobre coisas que eu podia e deveria fazer. Nos últimos cinco dias, eu havia aberto as portas do meu íntimo, deixando sair um monstro que estivera trancado dentro de mim. Até aquele momento, eu sequer tinha a consciência de que tal criatura habitava meu corpo. Mas ele sempre estivera lá e, mais do que isso, era real. Real o bastante para se rebelar contra tudo o que construíra ao longo de mais de 20 anos; meu casamento, a paternidade, a profissão. Até mesmo a ética e a moral viraram objetos de troça para meu monstro, faminto por novas experiências.
Talvez tivesse sido nesse monstro que Robert Louis Stevenson pensara ao escrever O médico e o monstro. Possivelmente, o senhor Stevenson tivesse, assim como eu, contatado seu monstro. No meu caso, a droga que fizera o lado obscuro emergir não fora fruto de alquimia, mas, sim, de estar à beira da morte. Como era delicioso romper barreiras! Fazer o impossível, o nunca pensado, e, de repente, executar com as próprias mãos atos que em tudo divergem do homem que você fora por anos.
Fiz Sílvia sentir da pele o mal que me fizera; maculei meu setting analítico, profanando a relação terapeuta-paciente; joguei minha carreira para os ares; matei meu lado paternal, e, supostamente, havia matado uma pessoa (ou, pelo menos, pensara que havia matado). Contudo, o corpo não estava lá; havia sumido. Ou nunca estivera. Se a segunda hipótese fosse real, então, o monstro não o era. Nunca o fora. Nunca existira monstro algum, senão eu mesmo. Eduardo Bernardi, pai, esposo, terapeuta.
Nem eu, nem o monstro, matara Flávia. Possivelmente, ela continuava viva em algum lugar. Eu havia ligado meu celular e consultado as ligações; dediquei-me a conferir as chamadas feitas no horário que, supostamente, eu havia falado com Flávia, marcado com ela encontro no hotel. De fato, havia uma chamada feita, mas não atendida.
Consultei a caixa postal, que acusava três mensagens; uma de Alberto, desejando saber onde e como eu estava, e outras duas de Flávia, dizendo que me esperava no Ritz, que eu era um imbecil por tê-la feito de boba e que nunca mais queria me ver.

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O Monstro
Bí ẩn / Giật gânO que você faria se soubesse que tem somente sete dias de vida, e tivesse acabado de descobrir que sua esposa é infiel? Meandros da mente humana e o potencial destrutivo que todos possuímos são abordados em "O monstro", publicado exclusivamente no...