Eu odiava meu pai. Acho que sempre o odiei; apenas havia varrido toda sujeira do ódio para debaixo do tapete, jogado tudo no fundo do baú, girado a chave e lançado dos recôncavos mais obscuros de minha mente.
Desde que saíra de casa para estudar e, posteriormente, quando me casara com Sílvia, foram poucas as vezes que visitara meus pais, e, naquele momento, enquanto revivia os momentos mais dolorosos de minha vida, relembrava por quê. Eu não queria encontrar meu pai; olhar nos seus olhos, ver sua maldita decadência de perto e sentir, como se corroesse minhas entranhas e esfolasse minha pele, o nojo que eu tinha por aquele homem desgraçado.
Como efeito colateral mais doloroso nesse processo todo, o mesmo sentimento de autopreservação que me afastara por anos do meu pai também me mantivera longe de minha mãe. Obviamente, ela era mais vítima do que eu; contudo, olhar minha mãe era como enxergar um reflexo distorcido do meu velho pai. A mesma parte de um todo podre, desprezível.
Por anos fora assim, até que, simplesmente, deixou de ser. Eu parei de me importar com a vida dos meus pais como se, de algum modo, eles já estivessem mortos, ainda que caminhassem sobre a terra. A certa altura, o asco por minha mãe tornara-se maior do que aquele que nutria por meu pai. Isto porque ela sofrera, na pele, toda crueldade que aquele homem vil destilava contra aqueles que estavam próximos. E, ainda assim, ficara até ao fim no seu lado; estava ao lado dele quando engordara e adquirira sobrepeso em virtude de uma depressão que lhe fazia comer e vagar pela casa como um verme; continuara ali quando ele enfartara e passara dois dias entre a vida e a morte, conectado a este mundo por aparelhos; e chorara sua morte enquanto eu desejava matá-lo outra vez simplesmente ao olhar seu corpo acinzentado acomodado naquele caixão de pinho.
- Ele era, de fato, um monstro – eu murmurei, pronunciando as palavras com os dentes semicerrados, enquanto aqueles olhos azuis-piscina se mantinham cravados em mim, como se me acusassem de algo que eu desconhecia. – Ele acabou com a vida de minha mãe. E acabou com minha vida.
Ergui o olhar e observei a velha. Ela continuava parada no canto da sala vazia, em pé. Limitava-se a me fitar com um misto de curiosidade, pena e rancor.
- Foi por isso que Fido apareceu para mim, não foi? - perguntei. – Digo... minha mente está me pregando peças. Fido está morto; não é real. Você também não é real. Sua pele enrugada e seus olhos inquisidores; tudo não passa de coisa de minha mente. Vocês não são reais.
Deixei as costas escorregarem junto à parede e me sentei no chão. Apoiei a testa na mão e fixei o olhar num ponto vazio.
- Mas são bastante reais na minha mente – falei. – E estão aqui por que querem me dizer algo. Reencontrar Fido me fez lembrar coisas que, para mim, nunca aconteceram.
A mulher, até o momento calada, falou por fim:
- Nunca aconteceram para Eduardo Bernardi; mas que são bastante vivas na mente do homem que você se tornou – ela disse. – Você desejava a liberdade; aproveitar seus últimos dias fazendo tudo o que as amarras sociais não lhe permitiam. Na verdade, essas amarras nunca existiram.
- Eram apenas pretextos para que eu continuasse a ser alguém totalmente diferente de minha natureza – e, voltando os olhos para a velha, prossegui: - É isso que quer dizer?
Ela assentiu, meneando a cabeça.
Dei um longo suspiro e falei:
- Meu pai matou Fido. E, agora, sua imagem... seus... atos... não saem de minha cabeça. Por que estou me lembrando disso? Por que essas memórias não me deixam em paz?
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O Monstro
Mystery / ThrillerO que você faria se soubesse que tem somente sete dias de vida, e tivesse acabado de descobrir que sua esposa é infiel? Meandros da mente humana e o potencial destrutivo que todos possuímos são abordados em "O monstro", publicado exclusivamente no...