As partículas de poeira ganhavam uma nova coloração ao colidirem com os feixes de luz que penetravam pela janela. Dei mais uma boa olhada no dia de sol do lado de fora e, em seguida, voltei meus olhos para a velha parada no meio da sala em que me encontrava.
- Ah, você ainda está aí? – perguntei, com voz desanimada. – Achei que, agora, que está tudo terminado, você sumiria.
- Acha que vou embora e deixar você só porque descobriu quem eu sou, Eduardo? – ela se aproximou de mim e, com dificuldade, sentou-se ao meu lado. – Naquele dia, naquele fatídico dia em que me violentou, passei a morar em você, em algum lugar, dentro de sua mente – falando isso, apontou para minha cabeça. – É incrível o que nosso inconsciente consegue fazer; para o bem e para o mal. Como terapeuta, você deveria saber disso.
- Acho que você tem razão – falei. – Possivelmente, até a escolha de minha especialização em Psicanálise tenha ligação com tudo o que passei.
- Possivelmente mesmo – ela concordou. – O Eduardo Bernardi que a maioria das pessoas conhece nasceu naquele dia, pela tentativa de esconder quem você realmente é e, também, o que fez.
Meneei a cabeça. Maria Clara fora uma moça que eu conhecera em uma festa na universidade. Cursava Geografia e era lindíssima – mestiça de mãe indígena e pai italiano, o que lhe dera um tom de pele jambo, mas olhos azuis profundos. Eu me apaixonara por ela, mas ela não correspondera. Algo em mim não aceitou a rejeição quando ela me disse que poderíamos ser amigos e que, apesar do nosso sexo ser maravilhoso, deveríamos parar por ali. Eu a violentei de modo vil; estava totalmente fora de mim. Lembro de ter tentado argumentar, mas, à medida em que ela se negava a ouvir, segurei-a e, quando dei por mim, estava sobre ela.
Quando notei o que fiz, peguei minha roupa, vesti, e saí do apartamento o mais rápido que pude. Por dias, semanas, temi que a polícia batesse na minha porta; então, após um pouco mais de um mês do ocorrido, uma conhecida me contara que Maria Clara, a garota que tinha o mesmo nome de minha mãe, havia trancado matrícula e abandonado o curso.
Pensei várias vezes em telefonar para ela; descobrir seu número e tentar um contato. Mas desisti; eu tinha medo da acusação; medo der preso; e, acima de tudo, medo de quem eu era, medo de ser como meu pai.
Por um ano mantive uma rotina espartana, limitando-me a ir da USP para o apartamento em que morava e, terminada a aula, retornar e me enfiar nas leituras. Minha vida seguiu assim até que conheci Sílvia.
"Irônico. Então, o ciclo se repetiu", refleti, rindo de minha sorte.
Olhei mais uma vez para a luz que entrava pelas frestas da cortina e disse:
- Eu vi o namorado de minha filha. Quer dizer, enquanto estava delirando, ele apareceu para mim – um bolo havia se formado em minha garganta; engoli uma porção de saliva antes de prosseguir: - Ele está morto?
- Infelizmente, sim – disse a velha. – Acho que você já sabia que ele estava morto. Afinal, se eu sei, é porque você também sabe.
Encobri o rosto com as mãos, tentando colocar os pensamentos em ordem.
- O que foi que eu fiz?...
- O que fez? Você aceitou o monstro que mora dentro de você. Acredito que tenha sido um processo doloroso, mas necessário.
Dei um longo suspiro e, resignado, concordei.

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O Monstro
Mystery / ThrillerO que você faria se soubesse que tem somente sete dias de vida, e tivesse acabado de descobrir que sua esposa é infiel? Meandros da mente humana e o potencial destrutivo que todos possuímos são abordados em "O monstro", publicado exclusivamente no...