Enrolei o corpo de Flávia no lençol e, suspendendo-a pelos braços, arrastei-o até o chão. Depois, ainda pelos braços, puxei-o até o banheiro e acomodei-o sob a pia.
Fechei a porta e olhei para o colchão sem lençol. Era uma medida paliativa, mas tinha que servir. Felizmente, aquela espelunca era frequentada por gente do fosso social, de modo que várias coisas deviam acontecer e passar despercebidas. Afinal, ninguém deseja saber detalhes do que se passa na vida de traficantes, prostitutas ou de pobres infelizes que procuram um hotel barato no meio do nada para pernoite.
Certo de que isso me daria tempo, abri a mochila e retirei dela meu quite de barbear; gilete, espuma e pincel. Havia anos que eu usava barba e já me esquecera de como era meu rosto por trás daquela máscara de pelo. Levei quase dez minutos para terminar de me barbear, e, quando me olhei no espelho, tive a sensação de estar diante de um homem muito mais novo. Como num flash, meu reflexo se transformou numa imagem de mim mesmo mais jovem, com catorze ou quinze anos.
Limpei o rosto com minha camiseta e a atirei dentro da pia. Olhei para meus pés; junto deles, o corpo de Flávia jazia enrolado em lençol, como um objeto qualquer.
Troquei e roupa e saí do quarto; tranquei a porta e enfiei a chave no bolso. Em seguida, precipitei-me escadaria abaixo, cumprimentando o garoto da portaria.
- O senhor vai sair? – ele me perguntou, com olhar desconfiado.
- Vou, mas volto. Pode incluir mais um pernoite em minha conta?
- O senhor ficará mais uma noite? – perguntou, consultando o livro de reservas.
- Sim, ficarei sim. Descobri que meu compromisso foi adiado e terei que passar mais um dia aqui. Algum problema?
- Não, não senhor – disse o garoto, fechando o livro de reservas. – O senhor ficará no mesmo quarto?
- Sim. O número 7. Gosto desse número – sorri, com ironia. – A propósito; estou levando a chave. Vocês têm alguma cópia?
- Temos, senhor, mas a cópia fica com a dona e ela só vem no período da noite. Normalmente, os hóspedes deixam a chave com a gente quando querem que limpem seus quartos. O senhor ira querer limpeza?
- Não, não quero não. Obrigado – disse. – Estou... trabalhando numas coisas e irei retornar. Melhor ninguém entrar. E, por falar nisso... – cocei a cabeça, como se tivesse me lembrando de algo importante. – Minha amiga, aquela que chegou hoje cedo, está no quarto tomando um banho. Ela está me ajudando no trabalho. Tudo bem ela ficar no quarto?
- Sem problemas, senhor – disse o garoto. – O senhor está pagando.
Agradeci e deixei o hotel na direção do meu carro. O veículo estava todo coberto de poeira. Entrei, cuidando para não encostar a camisa na lataria, e dei partida. Ganhei a estrada com um objetivo fixo em mente: encontrar Nataly, falar com ela. Era uma espécie de despedida, a oportunidade de dizer o quanto a amava e que, a despeito de tudo o que tinha ocorrido nos últimos dias, sempre iria amá-la.
Felizmente, o trânsito estava tranquilo, e, senão por uma ou outra carreta, consegui vencer os 50 quilômetros em tempo recorde. Entrei na cidade em direção ao centro. Ali, o fluxo de veículos estava mais pesado devido às ruas estreitas. Praguejei e decidi procurar um estacionamento; passava das duas e Nataly já deveria estar na sala de aula.
Assim que avistei a primeira placa de estacionamento, virei o volante e entrei. Tive a impressão de que o rapaz, um sujeito moreno que tinha os olhos semiencobertos por um boné de time de baseball, me encarou de modo estranho, como se me reconhecesse. Afastei esse pensamento, porque era virtualmente impossível; um estupro não é algo que se sai comentando na mídia, aos quatro ventos, de modo que Sílvia devia ter pedido discrição a seu caso e a política devia estar agindo de acordo.
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O Monstro
Mystery / ThrillerO que você faria se soubesse que tem somente sete dias de vida, e tivesse acabado de descobrir que sua esposa é infiel? Meandros da mente humana e o potencial destrutivo que todos possuímos são abordados em "O monstro", publicado exclusivamente no...