2017.
Passei aquela noite em claro. Na verdade, eu apenas cochilei por umas duas horas. A culpa da insônia foi do meu passado, que retornou para me apavorar. Ele era como uma daquelas caixinhas que a gente tranca na chave e esquece no fundo do armário, por anos, e acaba encontrando sem querer algum dia, toda empoeirada. Esta foi a minha sensação, após o desvio forçado e a passagem em frente a minha antiga escola. Além, é claro, da notícia do convite que chegou lá na casa dos meus pais, que também contribuiu para a minha falta de sono.
Era hora do almoço. Gabi e eu, estávamos sentadas ao redor de um balcão de cimento revestido de azulejos portugueses, na varanda aos fundos da confeitaria, a qual nós usávamos como refeitório. Por causa do forte calor em Novo Ipê, a maioria das casas antigas tinha uma enorme varanda que separava a residência do quintal. As famílias costumavam se reunir nessa parte da casa; para conversar e comer em volta da mesa. Antes da chegada do ar condicionado à cidade, essa área externa era o local mais importante das habitações, pois as pessoas ficavam mais tempo fora do que dentro das casas, que durante o dia pareciam um forno ou uma estufa gigante.
Quando nós encontramos esse casarão colonial, decidimos preservar a fachada, realizamos algumas adaptações na área interna e deixamos o quintal intacto, com as suas árvores; uma mangueira que fazia sombra em quase toda a área dos fundos, dois pés de goiaba, um de caju e um de cajá. E, claro, a varanda com seus ganchos para redes nas colunas. Havia duas penduradas próximas a nós, uma vermelha com uma arara azul bordada no centro e uma verde com flores coloridas estampadas nas laterais. Além do forno de barro e do fogão de lenha no canto próximo ao muro, que usávamos de vez em quando para preparos regionais, principalmente com peixe.
— Amiga, você, não está com uma cara muito boa hoje — disse Gabi, enquanto se servia de macarrão ao molho à bolonhesa. — Aconteceu alguma coisa?
— Não dormi direito, foi uma insônia, só isso. — Esfreguei as pontas dos dedos nos meus olhos tentando espantar o sono. A vista ardia e pesava. A minha cabeça parecia que iria explodir a qualquer momento e os meus movimentos estavam em slow motion, reações típicas de uma noite mal dormida.
— Tem alguma coisa errada acontecendo — ela afirmou, antes de dar a primeira garfada. — Você dorme até dentro de ônibus lotado, sacolejando, que eu sei. Encosta a cabeça no travesseiro e já apaga em segundos. Insônia e você são duas coisas que não combinam.
Hesitei, um pouco, em contar a razão da minha noite mal dormida, só que se tinha uma pessoa com a qual eu poderia falar sobre aquilo era a minha sócia.
— Ontem a minha mãe foi lá em casa e contou que me convidaram para uma reunião de ex-alunos na Machado. — Girei o garfo entre os dedos e o deixei cair em cima do balcão. — E ainda passei, por acaso, em frente a Monteiro. Então...
— Está explicada essa sua cara de velório, eu pensei que você já tinha superado aquelas coisas... — Ela viu uma das ajudantes passando pela porta. — Aquelas lá que você sabe bem.
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A Menina do Casulo
RomanceSINOPSE: Elisa Meyer é uma mulher solitária que guarda no corpo e na alma marcas de um passado cheio de traumas e mágoas. Ela nasceu com uma deformidade no rosto em decorrência de uma falha congênita, isso fez com que ela sofresse muitas agre...