Os dias seguintes foram como todos os outros e Tina já tinha quase esquecido o incidente com Pedro. Na hora do recreio, Amanda gostava de se esconder na biblioteca e arrastava a amiga junto com ela. Dayse, a funcionária da escola, permitia que entrassem com lanche, embora fosse proibido. Esse era um privilégio de alunos bem comportados.
Divisórias de compensado e vidro limitavam a saleta de estudos abafando o som da conversa das duas e mantendo um relativo silêncio. Nos anos anteriores, muitos livros haviam sido doados cedendo espaço para três computadores. Restavam poucas estantes com uma ou outra prateleira vazia. Algumas lâmpadas ficavam apagadas deixando o local soturno e quase sempre deserto.
Era outono e uma frente fria trouxe uma garoa persistente e monótona criando poças pelo pátio da escola. Em dias assim, Lex se juntava às amigas evitando competir por locais secos onde pudesse lanchar.
Alexandre detestava que o chamassem pelo nome de batismo preferindo o apelido. Lex, segundo o próprio, era um nome mais unissex e que condizia com a aparência andrógina do garoto. Os óculos grandes de aro preto contrastavam com a pele clara e com os traços finos e delicados. Os cabelos eram negros, lisos e repicados.
Naquela manhã, os três sentavam à mesa oval de seis lugares que ocupava quase todo o cubículo.
- O que é isso que você tá comendo? Eca! Parece ração de cachorro - perguntou Lex ao ver os biscoitos caseiros de Tina.
- Receita nova da minha mãe.
O garoto fez uma careta e voltou a olhar para o próprio celular enquanto comia salgadinhos industrializados de um pacote barulhento sobre a mesa.
- É gostoso, Lex - disse Amanda provando o lanche da amiga. - Experimenta!
- Você gosta de comer qualquer coisa - retrucou Lex sem erguer os olhos do aparelho - e Tina nunca experimentou um biscoito de verdade.
Tina olhou para o próprio lanche sem cor e sem graça um pouco envergonhada. A mãe seguia uma dieta rígida e nunca deixava as filhas comerem lanches industrializados. Tina observou Lex lamber os dedos cheios de gordura e sal, e a tentação de roubar um punhado era grande. Ela já havia cometido delitos assim na infância e ainda lembrava do fascínio que sentia com aqueles sabores.
Lex abandonou a postura relaxada soltando um palavrão em voz baixa. Os olhos correram do celular para o rosto de Amanda.
- Sinto muito. Eles atacaram de novo.
- Deixa eu ver! - pediu Amanda. Aquilo já era esperado, ainda assim, desanimador.
Lex passou o celular para que as duas vissem as imagens. Edições traziam o rosto de Amanda como personagem de quadrinho. Vestido de noiva e comidas típicas de festa junina eram usadas como pano de fundo para gozações.
- Eu não aguento mais isso! - desabafou apertando as mãos e deixando as lágrimas correrem. - Se até o Lex recebeu essas imagens, todo mundo já deve ter visto. Eu não quero sair daqui. Eu não vou voltar pra aula.
- Fique calma! - Tina passou o braço pelos ombros da amiga, a consolando. - Eu vou ficar aqui, com você, se for preciso.
- É sério isso?! - exclamou Lex ao ver as duas meninas aceitando a derrota. - Vocês vão deixar esses vermes ganharem? Ergue essa cabeça, menina!
- Você fala como se fosse fácil! - reclamou Amanda. - Acha que já não tentei? Minha vida se tornou um inferno desde que colocaram esse apelido odioso em mim.
Tina se afastou sentindo as últimas palavras cravando no peito.
- Queria saber quem foi o infeliz que decidiu me chamar de Rainha de Copas. Ninguém ligava pra minha existência até esse maldito apelido aparecer.
Tina queria sumir diante da própria impotência, a culpa enchendo os olhos d'água. Se Amanda soubesse as coisas que ela tinha feito...
- Então você vai ficar aí só se lamentando? - insistiu Lex tentando motivar a amiga. - Daqui a pouco eles te esquecem. Só precisam que alguém faça uma besteira gigante ou irrite algum deles. Você não tá sozinha e a gente vai enfrentar aquele pátio juntos.
- Eu não consigo! - chorou Amanda. - Me ajuda, Tina!
- Desculpa! - foi tudo que conseguiu dizer.
- Assim você não tá ajudando! - Lex levantou da cadeira irritado erguendo Amanda diante dele. - Você não vai dar o gostinho deles te verem desse jeito. Você vai voltar pra sala de queixo erguido. Tá me ouvindo?
Lex sacudiu os ombros de Amanda junto com um sorriso encorajador. Tina fechou a embalagem plástica com o restante do lanche. Seria impossível comer mais alguma coisa enquanto houvesse aquela espinha entalada na garganta.
O silêncio se tornou uma névoa que só foi dissipada pelo sinal de término do recreio.
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Pedro e Tina
Teen FictionTina estava cansada de ver a amiga sofrer bullying e resolve se rebelar. As coisas estavam indo de mal a pior quando Pedro, um dos agressores, descobre algo sobre o passado dela que Tina queria muito esquecer. Refém dos caprichosos do garoto, ela c...