Dia 17

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A Missão (por RenikVanDorn)

Felix senta-se no sofá amarelo queimado segurando uma xícara de chá enquanto a senhora encaminha-se de volta à cozinha tagarelando mais alto conforme se distancia. Deprime-se com a recordação da saída dos filhos e como a solidão abraça o lar como uma nuvem densa.

O sobretudo negro esconde as dezenas de maneiras de pôr um ponto final eterno. Nunca gostou do barulho de coisas caindo, menos ainda dos gritos histéricos, sustos ou lutas corporais. Não somente por não deixar rastros em suas nada agradáveis visitas – e manter tal fama –, mas também por ver elegância na sutileza.

Dona Leonora voltou sorrindo, questionando como Joaquim e ele se conheceram. O homem gaguejou duas ou três vezes, ainda que sem demonstrar qualquer insegurança nas mãos ou íris. Então sorriu como um ator premiado, garantindo que conheceu seu neto no colegial e foram grandes amigos desde a quinta série. Depois seguiram caminhos opostos, conversando ora ou outra pela internet.

Ela questionou o motivo da visita, desculpando-se logo depois pela intromissão, lhe dando ainda maior certeza de sua inocência.

A senhora soltou incontáveis palavras e histórias de família. Apresentou álbuns, reclamou de todas as dores e comentou a paixão em decorar e redecorar a casa, estranhamente entristecendo-se por já ter feito tudo o que planejara fazer. Ele se permite olhar em volta e preencher o peito com a sensação de casa de avó; confortante, pacífica, tão com cara de segundo-lar.

As cores combinam em amarelo queimado, bege e branco. Um quadro com vasos de flores enfeita a parede principal da sala de estar e até mesmo o abajur combina com o sofá e as cortinas da grande janela. Ali é leve, como se fosse o único lugar respirável num planeta cada vez mais escasso de oxigênio.

Embaixo do casaco abotoado, sua missão. Era pago para os trabalhos e nunca questionou tais ordens, fora treinado para apenas cumpri-las e livrar o mundo do excesso de brutamontes de sangue frio. Questionar combinava mais com os engomadinhos do escritório e ir para a rua, sujar mãos de sangue, ficar exposto às últimas miradas, cabia aos peões que não fariam falta num jogo onde só há reis.

Mas Leonora não parece um brutamonte, menos ainda alguém que sangra ainda mais um mundo rendido.

Ela o encarou pensativa e sorriu, pondo um sorriso sincero no rosto do homem que naquele dia soltou mais palavras do que em prováveis longos anos. Ele se pegou questionando o abismo de tempo em que não permitia que alguém lhe visse os dentes, brancos e alinhados, aliás. Ela pareceu admirá-lo ao mesmo tempo. E o elogiou.

A senhora gargalhou alto depois de dizer que se fosse vinte ou trinta anos mais nova, estaria com caras, bocas e poses encarando-o com pernas abertas no sofá de frente ao que ela acomoda-se e admira. Ele ri de mesma maneira.

Seu telefone toca, fazendo-o tremer e sugando completamente o clima de descontração.

— Status – diz uma voz feminina e completamente robotizada.

— Feito – responde o homem com sua voz grossa, amedrontadora em outros momentos, mas agora, somente séria. E comum.

— Resposta não aceita. Status.

— Cumprida. – Sua voz treme, parecendo entregar a ânsia que embaraça seu estômago.

O homem vira-se para a senhora que o encara curiosa para saber que tipo de conversa é tão seca como tal. Ele não responde, apenas se aproxima cada vez mais do sofá quase em tom claro de marrom.

De todas as maneiras do fim que guarda no interior de seu casaco, decide usar algo que se perdera entre a escuridão dos medos e decepções escrachadas. O rosto da mulher cora e ele sorri de volta quando a face dela é preenchida por dentes.

Antologia 1 - JunhoOnde histórias criam vida. Descubra agora