Eu não sei dizer ao certo quando foi, eu não consigo me lembrar da primeira vez que entendi que havia algo errado comigo, talvez eu apenas sempre soubesse.
Puxando minha memória mais antiga, eu lembro de um Natal, eu deveria ter quatro anos, ganhei um carrinho de controle remoto, igual meus irmãos. O meu era amarelo e verde, grande, com rodas pretas e uns detalhes em vermelho. Mas eu o odiei!
Minha irmã ganhou uma coleção de bonecas, eram quatro princesas da Disney. Cinderela, Branca de Neve, Bela e Ariel, eu amei tanto. Eu queria brincar com elas, queria ser como elas, queria usar aqueles vestidos de baile, ter os cabelos compridos e poder valsar com um príncipe.
Mas eu era um menino, nasci homem e morreria homem. Mesmo que eu odiasse ser um.
Naquela noite eu chorei, chorei muito e me odiei, odiei meu corpo, odiei cada parte de mim. Odiei mais ainda eu não poder ser quem eu queria ser. Se nos desenhos diziam que podíamos ser o quiséssemos, bastava seguir nossos sonhos, e o meu sonho era ser como a minha irmã, porque eu não podia ser uma garota?
Geovana me encontrou embaixo da minha cama chorando e ela me levou para o seu quarto. Provavelmente ela foi a primeira a entender que "havia algo de errado" comigo. Ela me deu a sua Ariel e disse que eu sempre podia brincar com ela, que seria nosso segredo.
Eu tinha apenas quatro anos, não entendia o porquê ser do jeito que eu era, era tão errado. Mas minha irmã, com apenas dez entendeu tudo e fez tudo o que pode para me proteger. Depois que nos mudamos de cidade, fomos morar em um apartamento com três quartos. Meus pais queriam que eu dormisse no quarto com meus irmãos, o que seria horrível para mim, mas minha irmã me salvou. Ela convenceu meus pais a me deixar dormir com ela, já que era ela que cuidava de mim para eles trabalharem, porque assim facilitava. Então eu podia dormir em um quarto cor de rosa, com bonecas e ursinhos de pelúcia, algumas vezes eu até podia usar pijamas fofos ou camisolas!
Geovana fazia festas do pijama com as amigas e elas me usavam de boneca, me maquiavam, faziam penteados e foi em uma dessas noites que ganhei meu verdadeiro nome, Hannah.
- Hannah significa "a graciosa", combina muito com você - Gê me disse e desde então eu me apaixonei por esse nome. Até aprendi a escrever ele antes de aprender a escrever o outro nome, aquele que odeio, Alexandre. . .
- Quem é Hannah? - um dia meu pai me perguntou desconfiado, porquê achou o nome escrito várias vezes nas folhas do meu caderno.
- Deve ser aquela meninha que o Alê anda de namorico - minha irmã respondeu antes de mim.
- Esse é o meu garoto! - meu pai bateu nas minhas costas orgulhoso - Seis anos e já é pegador!
Outra coisa que aprendi naquele dia: eu poderia ser o que quisesse, desde que o que eu quisesse ser não fosse ser quem eu era.
Como se algo rastejasse sob a minha pele, eu sabia que havia algo de errado, mas eu não podia identificar o quê. Me olhava no espelho e não me reconhecia, eu não me encontrava dentro dos meus olhos, eu não era a pessoa que aparecia nas fotos das festas de família.
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Caçada - Marcados
FantasíaE a guerra começou. . . Qual o meu papel nela? Eu também queria saber, mas sei que estou bem no meio dela. Com o sumiço de Eliel, nada mais é garantido, nada mais é como antes. O conselho não se resolve, cada espécie cria novas regras para tentar co...