Capítulo XV - Exéquias

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"Irmãos, a morte do nosso querido irmão enche-nos de tristeza e recorda-nos como é frágil e breve a vida do homem. Mas, neste momento de tribulação, conforta-nos a nossa fé. Cristo vive eternamente, e o amor que Ele nos tem é mais forte do que a morte. Por isso não deve vacilar a nossa esperança. O Pai de misericórdia e Deus de toda a consolação vos conforte nesta tribulação."

O funeral de José Lourenço Oliveira de Sá ocorreu às dezesseis horas do dia posterior ao seu óbito. Causa da morte: Ataque cardíaco. Todos que beberam e se divertiram no jantar que o falecido havia dado pouco antes de sua morte estavam presentes na Igreja da Ordem Terceira do Carmo para o velório, juntamente com muitos outros amigos e parentes que vieram dizer adeus. Morreu um homem profundamente amado, admirado e querido.

"Confia em Deus, e Ele te salvará. Espera n'Ele, e Ele dirigirá o teu caminho. Vós que temeis o Senhor, esperai na sua misericórdia.", o Padre continuou e aspergiu o corpo com água benta.

A viúva chorava silenciosamente pela perda do marido desde que começaram as exéquias. Os prantos mais desesperados foram proferidos no corredor de sua casa, ao ver o marido sem pulso nos braços de seu irmão. Agora, lhe restavam apenas as lágrimas silentes que não se incomodava em reter por trás do véu de rendas negras.

"Mostrai-nos, Senhor, o poder da vossa infinita bondade e iluminai a tristeza desta família com a firme esperança de que o vosso servo José Lourenço, separado de nós por morte repentina, viva feliz para sempre na luz da vossa presença. Por Nosso Senhor."

E a própria assassina estava presente. Serena e de coluna ereta, estava sentada ao lado dos familiares que, apesar de não serem muito próximos do falecido, tinham muito carinho pela moça recém-enviuvada. Uma expressão de cansaço e transtorno seria nítida se não fosse o elegante voilette preto lhe escondendo a face. Suas mãos enluvadas apertavam-se copiosamente em seu colo. As palavras ditas pelo Padre já não lhe faziam sentido nenhum. Sua mente entrara em um estado de devaneios confusos permanentes, tornando à realidade apenas quando lhe era requerido dizer "Amém".

"O justo, ainda que morra prematuramente, terá repouso. A velhice respeitável não consiste numa vida longa, nem se mede pelo número dos anos. Para o homem, o valor dos cabelos brancos está na prudência, e a verdadeira longevidade é a vida sem mancha. O justo agradou a Deus e foi por Ele amado; e, porque vivia no meio dos pecadores, Deus levou-o deste mundo. Arrebatou-o, para que a malícia não lhe mudasse os sentimentos e a astúcia não lhe seduzisse a alma. Porque a fascinação do mal obscurece o bem, e a vertigem das paixões corrompe um espírito inocente. Chegado à perfeição em pouco tempo, o justo completou uma longa carreira. A sua alma era agradável ao Senhor; por isso Ele Se apressou a tirá-lo do meio da iniquidade. Os povos viram, mas não compreenderam, nem refletiram neste fato: a graça e a misericórdia de Deus são para os seus eleitos, a proteção de Deus é para os seus santos. Palavra do Senhor."

O cúmplice, aquele que ajudou a assassina a desvencilhar-se de seu crime e moveu seu cadáver, o próprio cunhado do falecido, estava sentado bem ao lado da viúva. Estático, com a respiração tão suave que seu pulso poderia confundir-se com o do defunto, ele encarava as lágrimas escorrerem no rosto da irmã ao seu lado que estava embalando a filha pequena, adormecida, tão quiescente como se absolutamente nada se passasse em seu doce e inocente mundo de bebê. O rapaz segurou a mão da moça e ela retribuiu-lhe o aperto. O toque tão suave pareceu forte o suficiente para lhe quebrar os ossos - era o remorso apoderando-se de sua consciência.

"O Senhor é meu pastor: nada me falta. Leva-me a descansar em verdes prados, conduz-me às águas refrescantes e reconforta a minha alma. Ele me guia por sendas direitas, por amor do seu nome. Ainda que tenha de andar por vales tenebrosos, nada temo, porque Vós estais comigo. Para mim, preparais a mesa à vista dos meus adversários; com óleo me perfumais a cabeça, e o meu cálice transborda. A bondade e a graça hão-de acompanhar-me todos os dias da minha vida, e habitarei na casa do Senhor para todo o sempre."

Um coro descoordenado de "Améns", muito baixo, foi escutado após a leitura do Salmo Responsorial. O Padre prosseguiu:

"Irmãos, supliquemos humildemente a Deus, Pai de misericórdia, por este nosso irmão defunto, pelos seus familiares e também por todos nós, peregrinos neste mundo."

Um silêncio com pitadas de sussurro apoderou-se da igreja. Todos, ou melhor, os que se importavam (seja com o defunto, seja com suas convicções pessoais), começaram suas preces silenciosas. A viúva largou a mão do irmão, entrelaçou os dedos em volta da criança em seu colo e procedeu com sua oração, de olhos fechados e regada às lágrimas que ainda haviam de descer. Pediu pelos filhos, por sua saúde, felicidade e segurança. Prometeu dedicar cada fibra de seu ser aos pequenos e rogou pela própria vida, para que os filhos não ficassem desamparados como, um dia, ela e o irmão ficaram.

A assassina e seu cúmplice permaneceram de cabeça erguida e olhos bem abertos. O barulho cortante das orações sussurradas embrulhavam-lhe os estômagos. Estavam completamente fora do campo de visão um do outro por conta dos locais onde se sentaram - naquele momento, imploravam por um olhar de compreensão, aquele olhar que apenas um poderia conceder ao outro em tais circunstâncias. Fazia muito calor, os trajes negros se tornaram insuportavelmente quentes, os sussurros se tornavam cada vez mais altos e irritantes, o tempo parecia não passar... Chegaram a pensar que estavam sendo, de alguma forma, castigados. Nada melhor do que a culpa para despertar fé em dois ateus.

Findadas as preces silenciosas, os murmúrios transformaram-se em um Pai-Nosso em alto e bom som, proferido por todos os presentes - inclusive os responsáveis pela morte do homem que jazia no caixão com os pés virados para o altar.

"Pai nosso que estais nos Céus, santificado seja o vosso nome; venha a nós o vosso reino; seja feita a vossa vontade, assim na terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje; perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido; e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal."

Amém.

Uma grande procissão acompanhou o corpo até o cemitério. O cunhado do morto, uns dos conspiradores de sua morte, estava encarrado de carregar o caixão sob o sol escaldante do Rio de Janeiro junto com outros membros da família. Mas, no fim das contas, o real castigo eram os olhares inconsoláveis, o choro incessante e a tristeza profunda que se apossou dos corações de tanta gente mediante a perda daquele homem. Tanto para a assassina quanto para seu cúmplice, estar perante o lamento coletivo em prol do ser que eles mesmos conspiraram para que estivesse naquele caixão, era a penitência mais dolorosa que poderia lhes ser infligida. A verdade é que nenhum assassino pensa exatamente neste momento ao cometer um assassinato. Pensa-se no álibi, pensa-se em como a ausência daquela pessoa irá impactar sua realidade ou a realidade de alguém, pensa-se até em como se livrar do corpo em alguns casos. Mas raramente este momento de luto, de amargura está presente nos planos. E quando falamos de pessoas que, até pouco, eram moralmente íntegras e detestaram a sensação de sangue nas mãos, tudo se torna muito pior.

A procissão chegou ao cemitério. O caixão foi posto em seu devido lugar.

"Antes de nos separarmos, saudemos uma vez mais o nosso irmão. Este rito cristão do último adeus exprima sinceramente o nosso amor, suavize a nossa dor, confirme a nossa esperança: um dia virá em que o encontraremos de novo na casa do Pai, onde o amor de Cristo, que tudo vence, transformará a morte em aurora de vida eterna."

Algumas preces silenciosas foram proferidas novamente. A viúva, desta vez sozinha, aproximou-se do caixão e depositou sobre ele uma rosa, enquanto estava de mãos dadas com o filho mais velho - que ainda era novo demais para entender com clareza o que se passava. O Padre começou a incensação do caixão e um responsório foi recitado:

"Dai-lhe o perdão e a vida, para que descanse na vossa presença. Dai-lhe, Senhor, o eterno descanso, nos esplendores da luz perpétua. Dai-lhe o perdão e a vida, para que descanse na vossa presença."

A assassina estava bem no fundo da multidão de roupas negras em volta do caixão que estava prestes a ser baixado. Separou-se um pouco de sua família e ficou sozinha, de pé, perto o suficiente para que não fosse estranho, mas longe o suficiente para que se sentisse longe de todos. Ela encarava o bico envernizado dos sapatos pretos com absolutamente nada específico em mente, além do calor torturante que fazia. Sentiu, de súbito, alguém colar-se em seu braço esquerdo. Ergueu a cabeça e deu de cara com seu cúmplice, que lhe tomou a mão e acariciou o material da luva. Ela tomou a mão dele de volta e apertou com firmeza, recostando a cabeça levemente em seu ombro. O caixão foi enterrado. Que nós descansemos em paz.

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