- Onde aprendeste a fazer isso tão bem? - Perguntou Benício para Vitória, sentado em uma cadeira no banheiro, enquanto ela fazia sua barba de manhã cedo.
- Um fato divertido sobre ser mulher em uma Universidade é que o cargo de secretária dos professores está quase sempre vago. E quase sempre eu era colocada para fazer esse tipo de coisa.
- É quase impossível imaginar-te submetendo-se a isso. - riu.
- Às vezes é preciso. - riu - Eu precisava participar das pesquisas e ser inserida nos projetos. Se não fosse assim, não teria me formado.
- Bom saber que tenho a mesma moral que os mestres que lhe formaram.
- Só faço isso porque tua mão está machucada e disseste que não queria chamar o barbeiro.
- Eu digo muitas coisas, pretendes acatar todas?
- Estás certo de que queres testar a minha paciência enquanto seguro uma lâmina contra o teu pescoço?
- Haviam inúmeras chances para me matar no último mês, Doutora. Eu duvido que o faças agora. - riu.
- Não ria! - riu - Vou acabar cortando-lhe.
- Confio na tua destreza.
- Engraçadinho. Pronto, acabei.
Benício virou-se de lado para alcançar a tina de louça que continha água morna para limpar o resto da espuma em sua face. Secou o rosto e olhou-se no espelho.
- Nem um único corte. - sorriu - Obrigado, Doutora.
- Não há de quê. Agora, deixe-me ver a tua mão.
Benício permaneceu sentado e Vitória tomou a mão dele para si. Estava bem cicatrizada, apesar de as marcas serem feias. Ela pediu para que ele abrisse e fechasse diversas vezes e apertou sua palma.
- Dói? - Perguntou ela.
- Incomoda, apenas.
- Tua mão parece boa para mim. - Constatou Vitória.
- Quem diria...
- Idiota.
- Venha cá.
Benício usou a mesma mão que Vitória examinava para puxá-la para perto. Ela sentou de lado em seu colo e ele a beijou devagar até que ela o abraçasse de volta.
- Eu preciso trabalhar. - Disse ela ao encontrar forças para romper o beijo.
- Não, precisa não. - Respondeu Benício com o rosto enterrado no pescoço dela.
- Como é?
- A quitandeira da rua de baixo precisa trabalhar. O padeiro precisa trabalhar. São seis horas da manhã e a tua profissão é ser herdeira. - riu.
- Deus, você é ridículo.
- Levante-se, então.
E, como ele esperava, ela não se levantou.
A mesa do almoço estava animada. Um falatório incessante entre os empregados que riam e cochichavam enquanto Dona Ivete terminava de colocar a comida na mesa.
- Posso saber por que tanto falatório? - Perguntou ela após colocar a travessa de arroz na mesa. Todos ficaram quietos, segurando a risada. - Ih, o gato comeu a língua de vocês, é?
- É melhor não falar, Dona Ivete. - Disse uma das arrumadeiras.
- Mas que palhaçada é essa? Agora falem!
- A patroa passou a noite no quarto do Seu Benício hoje. - Disse a outra arrumadeira, sem conseguir conter a risada.
- Minda! - Repreendeu Sofia. - Não é certo fazer fofoca assim!
- Não é fofoca, é verdade! E eles ainda não saíram de lá. - riu.
- Verdade ou não, não é assunto para ser tratado na mesa do almoço! - Reclamou Dona Ivete.
- Ou em lugar algum. - Comentou Sofia.
- Isso mesmo, Sofia! - Concordou Dona Ivete. - Respeitem a privacidade de Dona Vitória que eu tenho certeza que ela não fica xeretando a vida de vocês para ficar falando na hora do almoço!
- Ah, Dona Ivete, mas é uma notícia boa. - Disse a arrumadeira que deu a notícia. - Pelo menos eles não estão brigando.
- Pelo menos, dessa vez, foi no quarto. - Murmurou a outra arrumadeira. Com exceção de Dona Ivete e Sofia, todos riram.
- Ah, chega deste assunto! - Disse Dona Ivete. - Mas, sim, confesso que é bom que não estejam brigando.
- Ninguém aguentava mais a gritaria. - Comentou o jardineiro, baixinho.
- Mas, é isso aí. Deus abençoe. - Disse Dona Ivete. - Depois dessa, vou até rezar uma novena pra ver se Vitória embucha de uma vez.
- Dona Ivete! - Exclamou Sofia em reprovação.
- O que tem a ver? - Perguntou uma das arrumadeiras, sussurrando, para a outra.
- Agora comam! - Ordenou Dona Ivete. - Daqui a pouco eles descem para almoçar e eu não quero um pio, uma risadinha sobre o assunto!
Benício acordou levemente desnorteado. As cortinas estavam fechadas e, por um momento, ele achou que ainda fosse noite - até olhar seu relógio na mesa de cabeceira e ver que já passava de meio-dia. Virou-se para o lado e viu Vitória, apagada, com a bochecha amassada no travesseiro e enrolada no lençol. Sentia profundas saudades de vê-la dormir, mas sua mente estava dividida entre aproveitar o momento e prever como aquilo não daria em nada. Era difícil e perigoso nutrir expectativas tratando-se de Vitória e ele estava ciente disso.
Vitória acordou sentindo a estranheza de uma cama que não era a sua. Os tecidos, o colchão e até mesmo o cheiro eram diferentes. Principalmente o cheiro, que era o mesmo da cama do apartamento de Benício. Era um estranho bom. O lado vazio da cama conservava o calor de quem estivera deitado ali. Ao levantar-se, observou Benício de frente para o espelho enquanto abotoava a camisa.
- Bom dia. - Disse ela, sonolenta.
- Boa tarde. - sorriu.
- Que horas são?
- Já passa de meio-dia.
- Merda, eu perdi a manhã inteira. - Disse Vitória, levantando-se rapidamente enquanto procurava por seu roupão e sua camisola.
- Eu vou para o escritório daqui a pouco, gostarias de uma carona?
- Não, obrigada. - Respondeu Vitória, já vestida. - Meu trabalho é em casa.
- Está bem. - sorriu.
Vitória foi apressada em direção à porta, mas parou no meio do caminho, voltou e foi até Benício, que permanecia arrumando-se em frente ao espelho. Ela o beijou no rosto e, antes que ele pudesse ter qualquer reação, correu até a porta. Ao sair, deu de cara com uma das empregadas, que a encarou como se soubesse exatamente o que ela estava fazendo horas atrás.
Após entrar em seu quarto e correr até o banheiro, Vitória sentou-se no vaso e apoiou os cotovelos nos joelhos, deixando a cabeça repousar sobre as mãos. Questionou a si mesma sobre o que havia feito. O relacionamento dela com Benício parecia dar certo porque eles simplesmente não se relacionavam. No fundo, ela sabia que estar com ele novamente era sinônimo de problemas - de problemas, brigas e sentimentos feridos. Após seu minuto de contemplação sem chegar a nenhuma conclusão quanto ao que fazer sobre seu casamento, ela ergueu a cabeça e a pia entrou em seu campo de visão. Não somente a pia, mas uma caixinha rosa que ela costumava a abrir todas as noites há alguns meses. Sentindo o coração bater mais rápido e a nuca gelada, ela tomou a caixinha para si. E, como ela bem sabia, o conteúdo dela permanecia ali.
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Castro e Souza
Fiction HistoriqueVENCEDOR #Wattys2018 Em 1925, dois membros da alta burguesia carioca - os belos herdeiros Vitória de Castro e Benício de Souza - tornam-se cúmplices de um crime quase perfeito, mas acabam colocando suas próprias reputações em jogo para ocultar seus...