Capítulo LXX - Nem um único corte

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- Onde aprendeste a fazer isso tão bem? - Perguntou Benício para Vitória, sentado em uma cadeira no banheiro, enquanto ela fazia sua barba de manhã cedo.

- Um fato divertido sobre ser mulher em uma Universidade é que o cargo de secretária dos professores está quase sempre vago. E quase sempre eu era colocada para fazer esse tipo de coisa.

- É quase impossível imaginar-te submetendo-se a isso. - riu.

- Às vezes é preciso. - riu - Eu precisava participar das pesquisas e ser inserida nos projetos. Se não fosse assim, não teria me formado.

- Bom saber que tenho a mesma moral que os mestres que lhe formaram.

- Só faço isso porque tua mão está machucada e disseste que não queria chamar o barbeiro.

- Eu digo muitas coisas, pretendes acatar todas?

- Estás certo de que queres testar a minha paciência enquanto seguro uma lâmina contra o teu pescoço?

- Haviam inúmeras chances para me matar no último mês, Doutora. Eu duvido que o faças agora. - riu.

- Não ria! - riu - Vou acabar cortando-lhe.

- Confio na tua destreza.

- Engraçadinho. Pronto, acabei.

Benício virou-se de lado para alcançar a tina de louça que continha água morna para limpar o resto da espuma em sua face. Secou o rosto e olhou-se no espelho.

- Nem um único corte. - sorriu - Obrigado, Doutora.

- Não há de quê. Agora, deixe-me ver a tua mão.

Benício permaneceu sentado e Vitória tomou a mão dele para si. Estava bem cicatrizada, apesar de as marcas serem feias. Ela pediu para que ele abrisse e fechasse diversas vezes e apertou sua palma.

- Dói? - Perguntou ela.

- Incomoda, apenas.

- Tua mão parece boa para mim. - Constatou Vitória.

- Quem diria...

- Idiota.

- Venha cá.

Benício usou a mesma mão que Vitória examinava para puxá-la para perto. Ela sentou de lado em seu colo e ele a beijou devagar até que ela o abraçasse de volta.

- Eu preciso trabalhar. - Disse ela ao encontrar forças para romper o beijo.

- Não, precisa não. - Respondeu Benício com o rosto enterrado no pescoço dela.

- Como é?

- A quitandeira da rua de baixo precisa trabalhar. O padeiro precisa trabalhar. São seis horas da manhã e a tua profissão é ser herdeira. - riu.

- Deus, você é ridículo.

- Levante-se, então.

E, como ele esperava, ela não se levantou.

A mesa do almoço estava animada. Um falatório incessante entre os empregados que riam e cochichavam enquanto Dona Ivete terminava de colocar a comida na mesa.

- Posso saber por que tanto falatório? - Perguntou ela após colocar a travessa de arroz na mesa. Todos ficaram quietos, segurando a risada. - Ih, o gato comeu a língua de vocês, é?

- É melhor não falar, Dona Ivete. - Disse uma das arrumadeiras.

- Mas que palhaçada é essa? Agora falem!

- A patroa passou a noite no quarto do Seu Benício hoje. - Disse a outra arrumadeira, sem conseguir conter a risada.

- Minda! - Repreendeu Sofia. - Não é certo fazer fofoca assim!

- Não é fofoca, é verdade! E eles ainda não saíram de lá. - riu.

- Verdade ou não, não é assunto para ser tratado na mesa do almoço! - Reclamou Dona Ivete.

- Ou em lugar algum. - Comentou Sofia.

- Isso mesmo, Sofia! - Concordou Dona Ivete. - Respeitem a privacidade de Dona Vitória que eu tenho certeza que ela não fica xeretando a vida de vocês para ficar falando na hora do almoço!

- Ah, Dona Ivete, mas é uma notícia boa. - Disse a arrumadeira que deu a notícia. - Pelo menos eles não estão brigando.

- Pelo menos, dessa vez, foi no quarto. - Murmurou a outra arrumadeira. Com exceção de Dona Ivete e Sofia, todos riram.

- Ah, chega deste assunto! - Disse Dona Ivete. - Mas, sim, confesso que é bom que não estejam brigando.

- Ninguém aguentava mais a gritaria. - Comentou o jardineiro, baixinho.

- Mas, é isso aí. Deus abençoe. - Disse Dona Ivete. - Depois dessa, vou até rezar uma novena pra ver se Vitória embucha de uma vez.

- Dona Ivete! - Exclamou Sofia em reprovação.

- O que tem a ver? - Perguntou uma das arrumadeiras, sussurrando, para a outra.

- Agora comam! - Ordenou Dona Ivete. - Daqui a pouco eles descem para almoçar e eu não quero um pio, uma risadinha sobre o assunto!

Benício acordou levemente desnorteado. As cortinas estavam fechadas e, por um momento, ele achou que ainda fosse noite - até olhar seu relógio na mesa de cabeceira e ver que já passava de meio-dia. Virou-se para o lado e viu Vitória, apagada, com a bochecha amassada no travesseiro e enrolada no lençol. Sentia profundas saudades de vê-la dormir, mas sua mente estava dividida entre aproveitar o momento e prever como aquilo não daria em nada. Era difícil e perigoso nutrir expectativas tratando-se de Vitória e ele estava ciente disso.

Vitória acordou sentindo a estranheza de uma cama que não era a sua. Os tecidos, o colchão e até mesmo o cheiro eram diferentes. Principalmente o cheiro, que era o mesmo da cama do apartamento de Benício. Era um estranho bom. O lado vazio da cama conservava o calor de quem estivera deitado ali. Ao levantar-se, observou Benício de frente para o espelho enquanto abotoava a camisa.

- Bom dia. - Disse ela, sonolenta.

- Boa tarde. - sorriu.

- Que horas são?

- Já passa de meio-dia.

- Merda, eu perdi a manhã inteira. - Disse Vitória, levantando-se rapidamente enquanto procurava por seu roupão e sua camisola.

- Eu vou para o escritório daqui a pouco, gostarias de uma carona?

- Não, obrigada. - Respondeu Vitória, já vestida. - Meu trabalho é em casa.

- Está bem. - sorriu.

Vitória foi apressada em direção à porta, mas parou no meio do caminho, voltou e foi até Benício, que permanecia arrumando-se em frente ao espelho. Ela o beijou no rosto e, antes que ele pudesse ter qualquer reação, correu até a porta. Ao sair, deu de cara com uma das empregadas, que a encarou como se soubesse exatamente o que ela estava fazendo horas atrás.

Após entrar em seu quarto e correr até o banheiro, Vitória sentou-se no vaso e apoiou os cotovelos nos joelhos, deixando a cabeça repousar sobre as mãos. Questionou a si mesma sobre o que havia feito. O relacionamento dela com Benício parecia dar certo porque eles simplesmente não se relacionavam. No fundo, ela sabia que estar com ele novamente era sinônimo de problemas - de problemas, brigas e sentimentos feridos. Após seu minuto de contemplação sem chegar a nenhuma conclusão quanto ao que fazer sobre seu casamento, ela ergueu a cabeça e a pia entrou em seu campo de visão. Não somente a pia, mas uma caixinha rosa que ela costumava a abrir todas as noites há alguns meses. Sentindo o coração bater mais rápido e a nuca gelada, ela tomou a caixinha para si. E, como ela bem sabia, o conteúdo dela permanecia ali.

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Castro e SouzaOnde histórias criam vida. Descubra agora