25 Setembro 2050

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"Já passou uma semana desde que vi Charlie pela primeira vez e pela primeira vez senti algo. Algo que só me lembro de sentir em criança. Amor, inocência, paz. Todos estes sentimentos me preencheram naquele momento. Simplesmente, não pensei nos problemas. Desde então, tenho trabalhado. Trabalhado como mãe deste ser que tem vindo a crescer... e a crescer. Ela é o meu espelho do passado e não tenho remédio se não viver esta vida que foi uma escolha minha. Ao menos estou a fazer algo por ela e por todos os que vierem, se tudo correr bem.

Eu e a minha Ifigénio dirigimo-nos, de mãos dadas, à terceira aula comportamental. Cada cientista irá avaliar o seu Ifigénio na relação com os outros. Tudo vai decorrer numa zona para crianças, um parque que conseguimos reproduzir e, seguidamente, iremos realizar alguns testes.

-Não quero mais - ouvi a minha Ifigénio dizer, enquanto caminhávamos.

-Então pequenina? O que se passa? - coloquei-me à sua altura.

-Não quero falar mais com os senhores da bata branca - respondeu, com uma cara triste, e com um vocabulário bastante desenvolvido, na verdade, adequado, na perfeição, a uma criança de cinco anos.

-Eu sou uma senhora da bata branca. Não gostas de mim?

-É diferente, tu és a mamã e quando fazes tu as perguntas não tenho vergonha, nem medo - sim, ela chama-me de mãe. Tento ignorar esse facto.

-Olha não tens que ter medo, porque eu vou estar sempre lá! E para além disso, hoje ninguém te vai fazer perguntas. Hoje vais brincar com uns amiguinhos, o que achas?

-Acho bem - respondeu, não muito convencida.

-Sabes qual era o meu doce preferido quando tinha a tua idade?

Ela respondeu, negativamente, abanando a cabeça para os lados.

-Uma barrinha de chocolate branco!

-Chocolate? - perguntou, desconhecendo a palavra. Os Ifigénios são muito inteligentes, mas na sua base está um código genético humano completamente normal, por isso é que, diariamente, devemos conversar muito com eles e fazer depará-los com palavras novas, de modo a otimizar o processo de crescimento rápido.

-Sim, queres provar? - disse, abanando na minha mão uma barrinha de chocolate, ao qual ela respondeu logo que sim, curiosa.
Abri-lhe o pacote, mas não o retirei por completo, dei-lhe um beijo na testa, sem pensar, e deixei-a seguir para o parque, onde já se encontravam algumas crianças. Eu segui para a zona laboratorial onde podia observar tudo, juntamente com uns colegas.

-Amelia? - Ouvi, enquanto me sentava numa cadeira, já avistando a minha Ifigénio. Virei-me para trás e encontrei Charlie, que se encontrava também sentado, rodeado de colegas.

-Charlie!

Não conseguimos iniciar uma conversa, visto que as luzes se apagaram e demos início ao teste guiado pelo nosso superior. Enquanto observávamos os Ifigénios a brincarem uns com os outros, fui tirando notas sobre o comportamento dela.
Continuava a comer a sua barrinha de chocolate, enquanto corria de um lado para o outro com um amiguinho. Tudo parecia normal, um momento de brincadeira entre crianças. E então o chocolate acabou. E o meu coração acelerou...

A minha Ifigénio olhou para o plástico do pacote, avistou um ponto de reciclagem e levou-o até lá, passando no teste. Um alívio cresce em mim e na maior parte dos outros monitores. No entanto, há uma criança que deita o papelinho para o chão e uma luz vermelha, acionada pelo nosso superior Jackson, é ativada. Consigo reparar na sua expressão de fúria, raiva. Ultimamente, tem sido esse o seu estado de humor, dada a situação em que nos encontramos.

Os Ifigénios têm tido, durante a semana passada, testes comportamentais, que incluem perguntas e vários exercicíos práticos. Como são crianças, tentámos contar uma história simplificada sobre o planeta e como devemos proteger a nossa casa. Este teste mais abrangente, que acabámos de realizar iria colocar em prova tudo o que treinámos. Mas a perfeição não existe, acima de tudo com o tempo que temos disponível, que é pouco.

Já consegui saber os resultados dos outros setores, e a situação ainda está pior, pois em cada teste três crianças não passaram. E nós somos cinco setores, no total. Agora façam as contas... Dado o tempo que temos previsto, não iremos conseguir terminar a nossa missão.

Enquanto me dirijo ao quarto, de mão dada com a minha Ifigénio, reparo que, no bolso da minha bata, está um pequeno papelinho. Ao chegarmos, Amelia senta-se na sua secretária, a desenhar, e eu pego no misterioso papel. Podia ter sido algo que escrevi e que me esqueci de pôr no diário, penso eu. No entanto, quando começo a ler, vejo que é algo melhor que me faz, inconscientemente, ter uma sensação na barriga. Algo que não sinto há muito, mas muito tempo.

Bilhete
-Vem ter comigo ao nosso sítio, hoje, durante a nossa pausa. Quero estar contigo! Ass: Charlie.

~•~•~•~•~•~•~•~•~

Caminhei pela zona exterior aos laboratórios, calmamente, até chegar ao "nosso sítio".

Ao chegar, deparei-me com uma manta no chão, que apresentava um cesto, com, provavelmente, comida lá dentro. E Charlie, sentado, a apreciar a imagem do sol, prestes a pôr-se.

Não reparou que eu tinha chegado, então sentei-me ao lado dele e ficámos os dois a olhar o mesmo.

-Ainda bem que vieste - ouvi dizê-lo, num tom aliviado.

-Porquê?

-Porque não consigo parar de pensar em ti! Porque acredito que o destino nos quer juntar. E mais do que o destino querer isso, eu quero, eu desejo - disse, enquanto me olhava nos olhos, profundamente.

- Não podemos...

-Porque não? Já escolhemos a nosso vida, o nosso destino também já sabemos qual é! Porque não aproveitar o tempo eu temos enquanto ele não chega? Porque eu não aguento mais. Eu escolhi viver assim, mas desde que te vi, não aguento mais.

Ouvi e senti cada palavra sua, e cresce em mim um desejo que há muito que estava adormecido. O desejo de viver, nem que seja por pouco tempo.

Tendo, ambos, isto em mente e na nossa alma, beijámo-nos. Um beijo mútuo, que não foi iniciativa, nem de um, nem de outro, individualmente, mas sim de ambos. E soube tão bem, mas tão bem...


Com Amor, AmeliaOnde histórias criam vida. Descubra agora