Mônica era de altura média, forte, cabelo curto, penteado mais para o masculino, não tinha um jeito feminino nem um jeito demasiado masculino, era um intermédio assim como a voz, os seus olhos eram castanhos. Tinha um piercing na sobrancelha e uma tatuagem no braço. Duas coisas que Paulo mais detestava, tatuagens e piercings. Eu vi logo que ele não gostou do jeito dela. Mas eu adorei e isso é que importa.
Entramos os quatro para uma sala acolhedora. Sentamo-nos e Mônica pediu para que a minha mãe e o Paulo contassem o que se estava a passar comigo. Eles contaram as versões deles, a minha mãe contou a mesma versão que Paulo claro. A meio da "história" a Mônica olhou para mim, eu senti-me observada então levantei a cabeça para a encarar. Ela olhou-me de uma diferente e especial, foi algo como eu não te conheço mas acho que a versão deles está errada. Como é que uma estranha nos conhece melhor que a nossa própria mãe? Também não sei. No final Mônica pediu que eles saíssem para poder falar comigo a sós.
-Bem, estás metida numa bela embrulhada. - disse depois deles saírem.
Continuei com a cabeça em baixo, eu só queria ir embora.
-Tudo o que for dito aqui vai ficar aqui, eu não vou contar nada do que tu me contas a tua mãe, muito menos ao teu padrasto. A não ser que estejas em perigo de vida claro. Eu só te quero ajudar, mas não consigo sem a tua ajuda. Eu sei que não te queres tratar, sei que a tua vontade é ficares num canto sozinha com a esperança de que um dia tudo isto passe. Mas tu não vais aguentar ficar assim durante muito tempo. A prova está aí no teu braço. Então o que achas? Queres-te juntar a mim?
Eu percebi que Mónica estava a ser sincera e que era de confiança.
-sim- foi um sim muito baixo mas Mônica percebeu que era sincero. O que acabou por despertar o meu sim foi o facto dela me entender, ela sabia que eu já não aguentava mais, mas que queria ficar num canto sozinha. Ela descreveu-me como se me conhecesse há anos.
Na viagem de volta para casa, continuei a ler o livro, o livro não era mesmo nada interessante, o que fazia com que eu ficasse focada noutros pensamentos, como Mônica. Eu sentia que ia ser uma grande ajuda. Eu gostei dela. E tinha razão. Eu passei a ir as consultas de Mônica de duas em duas semanas, com o passar do tempo as consultar começaram a decorrer na minha cidade porque Mônica dava consultas nas duas cidades. Ela ensinou-me muitas coisas num curto espaço de tempo. Mônica odiava o facto de eu tomar comprimidos para dormir numa quantidade tão elevada, ela dizia que aquilo era uma dose de cavalo. Mas a médica que os receitara era superior aos psicólogos e Mônica não podia fazer nada. Na segunda consulta, Mônica pediu que fizesse uma lista das coisas que me magoavam, quando a entreguei ela disse:
-já sabia que ias entregar uma lista enorme.
Foi ao fazer aquela lista que percebi quantas dores ao mesmo tempo sentia todos os dias.
LISTA:
-A separação dos meus pais.
-Aos 12 ter descoberto que o meu irmão mais velho não é filho do meu pai.
-Ter mudado de casa tantas vezes, ter-me faltado água e luz em casa
-A morte do meu avó
-A minha cadela ter sido envenenada pelos meus vizinhos por vingança aos meus pais.
-O meu pai ter batido na minha mãe.
-O corte.
-Estar dependente de comprimidos.
-Não me sentir bem comigo.
-A minha mãe se ter junto com Paulo.
-Ter perdido a minha privacidade e o meu espaço.
-Não conseguir ter boas notas.
-Não me sentir em casa nem em família.
-O meu pai não saber ser pai.
-Já tive medo do meu pai.
-Paulo ser o meu encarregado de educação.
-Sentir-me culpada de tudo isto.-Normalmente as pessoas têm no máximo 5 problemas Ileana, olha para ti, sentes-te culpada do que fizeste porquê? Claro que não o devias ter feito, mas tudo o que se passou antes não foi culpa tua e te teres cortado também não foi. Mas não quero que o voltes a fazer pois não é essa a solução para os teus problemas.
Eu sabia que não era solução para os meus problemas, mas tinha o mesmo efeito que um calmante. Eu sempre escondi bem o meu segredo até aquele dia, era mais complicado de esconder as marcas no verão pois andava de manga curta, mas mesmo assim dava uma desculpa esfarrapada dizendo que tinham sido os gatos do meu pai, eu estava tão habituada a disfarçar sentimentos que as pessoas acabavam por acreditar, essa situação chegou a acontecer com a minha mãe e o Paulo. Quando eu contei a Monica que eles tinham acreditado, ela jogou as mãos à cabeça como se não quisesse acreditar e perguntou como é que eles tinham caído numa desculpa dessas.
Com o passar do tempo Mônica foi me conhecendo cada vez melhor e chegou a dizer-me que a forma como a minha mãe me descreveu era feita por alguém que não me conhecia nada bem. A minha mãe descreveu-me de uma forma contrária e completamente errada. Mônica não percebia como é que uma mãe não conhecia bem a própria filha, mas é simples, a minha mãe conhecia-me , mas no dia da consulta descreveu-me como o Paulo me descrevia há anos.
Em algumas coisas, eles tinham razão. Desde que o Paulo apareceu eu tornei-me uma pessoa diferente, mas essas diferenças notam-se maior parte das vezes apenas em casa. Em casa, há dias que eu quase que não digo uma palavra, não tenho vontade. Eu não me sinto em casa. A minha mãe e o Paulo estão sempre a dizer que somos todos uma família, mas eu não gosto de brincar às famílias emprestadas e felizes. Eles vivem numa mentira como se fosse uma verdade. Eles magoam toda a gente desta casa sem darem conta, estão mais preocupados a discutir ou a ver apenas o lado deles.
A minha mãe mudou muito desde que se juntou com o Paulo. Ela só está mesmo bem comigo como estava antigamente quando eles estão chateados.
Tanta coisa mudou, eu adoro a época natalícia. Mas gostava mais quando passava a noite de Natal com a minha família. De família, passo o natal com a minha mãe e os meus irmãos. O resto é família do Paulo, não tenho as minhas tias, os meus primos ou os meus avós. E muito menos o meu pai. Há anos que eu não passo o natal com o meu pai.
Nós somos obrigados a ajustar-nos a vida. Ela não nos da escolha, mas eu há anos que tento ajustar-me e não consigo. Mônica tenta ajudar, é esse o trabalho dela, mas mesmo com a ajuda dela não é fácil.
-As pessoas da tua casa nunca vão mudar. O Paulo é o que é, e a tua mãe está cega por ele. Tu não podes mudar nada neles, mas podes-te mudar.
Como é que é suposto eu melhorar se o ambiente há minha volta para mim é horrível? Eu tenho dizer tudo o que penso, mas não dá, não consigo, parece que tenho um nó na garganta que não me deixa falar. E quando tento ajudar apunhalam-me pelas costas.
Uma vez o Paulo e a minha mãe discutiram. Eles ficaram chateados durante dias. Eu fui ter com o Paulo a sala e sentei-me para falar com ele. Deu-lhe um abraço, ele disse-te obrigado e ficamos a falar, ele desabafou sobre os dois filhos que não lhe falam e sobre o feitio complicado da minha mãe. Eu disse ao Paulo que ela tinha um feitio complicado sim, mas que isso era um escudo pois ela também já sofreu muito, foi a única coisa que eu disse sobre a minha mãe naquela conversa. Quando eles fizeram as pazes, o Paulo perguntou a minha mãe - sabes o quê que a tua filha disse de ti quando foi falar comigo para fazermos as pazes? - ele deu a intender que eu tinha falado mal da minha mãe. Eu tentei ajudar uma pessoa de que não gosto e foi esse o agradecimento.
Eu tenho dar-me bem com o Paulo, mas não consigo. Eu dantes pesava que o erro era meu, que eu estava a ser injusta com ele, mas quando falei com o meu irmão a cerca disso e ele disse-me que sentia exatamente a mesma, eu percebi que não estava errada. Percebi que o Paulo não é o que tenta parecer.
Eu só queria que a minha mãe entrasse no meu quarto, se sentasse, e perguntasse:
-Eu não me sinto bem aqui, achas melhor separar-me do Paulo?
Dantes eu pensava que não podia pedir uma coisa dessas por causa do meu irmão mais novo, mas agora percebo que a minha mãe está a cometer o mesmo erro que cometeu comigo e com o meu irmão. Deixou-nos no meio de discussões durante muito tempo. Todos os casais têm desentendimentos, mas não é aos gritos que se resolvem.
-O Martim é pequeno e está no meio de confusões. Tu não tens de te meter, e nem deves nas discussões deles. Mas tens o direito de proteger o Martim para ele não ficar no estado em que tu estás.- disse Mônica.
Mônica diz me para fazer muitas coisas e eu sinto que não sou capaz de fazê-las. Eu não consigo proteger-me a mim mesma nesta casa, quanto mais a uma criança de 3 anos? Eu tento, eu juro, o Martim é uma pessoa muito especial para mim. Mas nem sempre consigo.
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Silêncio Profundo.
RandomIleana é uma adolescente com 17 anos. A sua vida deu uma volta enorme a uma dada altura da sua vida, como consequência dos atos de outras pessoas, Ileana teve de aprender a viver com duas coisas, depressão e mutilação. Transformou-se num coração de...