Perto Do Coração Selvagem

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"Saia do meu caminho,eu prefiro andar sozinho, deixa que eu decido minha vida. Não preciso que me digam, de que lado nasce o sol, porque bate lá meu coração."
Oscar acordou com Chicão cantando alto enquanto dirigia ao som de Belchior. No íntimo, Oscar sentiu que teria um dia melhor do que ontem.
- Bom dia, muleque!
- Bom dia, Chicão!!!
Respondeu Oscar esfregando os olhos.
- Menino, vamos deixar umas sacas de grãos na Fazendo Velha, antes vamos tomar um cafezinho e comer tapioca com carne do sol.Aquele era o café da manhã dos sonhos do adolescente: ele estava animado; hoje, com toda certeza, o dia seria maravilhoso.
-Eita Chicão!

Depois de descarregar algumas sacas, depois do café da manhã, já estavam na estrada cantando alto Belchior. Um sentimento de paz e alegria deu forças a Oscar. Logo, ele ligou o celular, respondeu as mensagens de Will. Lamentou consigo mesmo o fato de ele nunca está "online".
Vendo suas fotos, de Will, parecia que ele era alto: uns 1,80, moreno, de olhos negros e cabelos crespos, de rosto afilado, uma boca que pedia beijos. Riu sozinho de si ao lembrar de uma mentira: dissera a Will que não era virgem! Oscar nunca havia, sequer, beijado. Aquela suposta mentira deu-lhe um pavor, mais depois se acalmou, pois se entregaria ao homem da sua vida, com qual construiria uma família, se casaria.
- Esse menino vive no mundo da lua!
Comentou Chicão ao dar uma gargalhada e dar uma bagunçada no cabelo de Oscar.

Chicão estava feliz: conseguira dinheiro suficiente e, agora, estava mais próximo de casa. No fundo, ele queria muito saber a história daquele garoto, entender a loucura descabida de ajudar Oscar sem, sequer, o conhecer. O sentimento de amor ao próximo sempre fez Chicão ser chamado de altruísta por uns e de otário por outros. Aquele menino, ali no caminhão, dava-lhe uma lembrança viva de seu filho Otávio, assassinado ao reagir a um assalto. Já fazia dois anos, mas ainda doía demais. O que ainda alegrava seu coração ferido, era Juliana, sua filhinha de três anos. Enquanto dirigia em direção a Crateús, sua filha e sua mulher inundavam seus pensamentos. Acendeu um cigarro e percebeu que Oscar fez uma careta em desaprovação. Oscar voltou novamente sua atenção para o celular. Chicão aumentou o volume do rádio, orou mentalmente para que Jesus, Maria e José protegessem sua família e também aquele menino que estranhamente, ele já considerava como um filho.No bloco de notas, Oscar escrevia o que não conseguia dizer para ninguém. Era o seu momento de ser livre. Abriu o bloco de notas e começou a digitar:

"No escuro igual bicho do mato,
uma presa fácil, lobo sem matilha,
caçador sem munições.
Doente, faminto sedento
no agreste da cidade em chamas.
Enquanto existirem sorrisos, existirão choros; assim como existe o nascimento do agora, há a morte do agora também...
Até quando minha sombra me
acompanhará antes de sumir?
Selva de pedra,
De flores de plásticos,
De narcisismo e altruísmo...
De chegadas,
De saídas;
De adeuses e até logo.
Era igual outro bicho do mato:
Por vezes, adestrado por sobrevivência,
Mas selvagem por natureza do instinto."

Ao ler o que escreveu, lembrou que era aluno aplicado, na oficina de poesia da tia Miriam. Foi lá que descobriu Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade e Florbela Espanca. Oscar foi, então, tomado por uma vontade imensa de ler. Sentiu saudades da escola e, mais precisamente, da biblioteca. Depois de longas horas, finalmente chegaram ao único posto de gasolina da cidade. Chicão estacionou o velho caminhão, herdado do pai.

- Vamos dar uma passadinha rápida na igreja.
Oscar balançou a cabeça em concordância. Ao entrar, os dois, automaticamente, fizeram o sinal da cruz, com estranha sincrônia. A igreja estava vazia. Uma atmosfera de paz tocou o coração de ambos. Se separaram, cada um fez a sua oração. Chicão orou pot sua família e por seu filho morto. Oscar orou para Deus proteger sua mãe e Will; pediu forças e agradeceu por ter encontrado um anjo em forma de caminhoneiro. Uma hora se passou, os dois caminhavam em silêncio. Ao chegar no caminhão, Oscar notou que Chicão estava emocionado com algo pelo qual não entendia. Um desejo de abraçar aquele homem naquele momento: era como um pai.

Depois de descarregar algumas sacas de grão, exaustos, foram ao único restaurante da pacata  cidade onde se encontrava. Amanhã seguiriam para o distrito de Madalena, depois Paramoti e, em seguida, direto para Fortaleza. Oscar agradeceu em silêncio pela comida, por mais aquele dia vencido. Chicão avisou a Oscar que iriam dormir hoje alívio na cidade e, logo cedo, pegariam a estrada. Oscar apenas lançou um olhar sobre o caminhoneiro e ligou os dados móveis no celular.  Notou que Will estava "online". Sem se aperceber, deu um grito de alegria. Chicão ignorou o estranho gesto. Will pediu a Oscar para ligar para ele o visse pela internet. Oscar, de pronto,  aceitou. A presença de Chicão dava um certo desconforto, porém, não ia perder a chance de falar com Will.

- Olá  meu gurizinho do sertão.
Disse Will sensualizando com uma voz que fez todo seus pêlos se arrepiarem.
- Beméeeee, eu tavaaa com saudades de ouvir sua voz.
Titubeou, gaguejou e notou que Chicão deu um leve sorriso.
- Meu amor ta bem? Por que sumiu?
- Estava sem dados móveis.Will onde você mora exatamente em Fortaleza?
Perguntou Oscar, sondando onde o acharia seu endereço ao chegar em Fortaleza.
-Meu amor, moro na Praia do Futuro...

A ligação caiu, seus dados móveis acabaram. Oscar entrou em desespero. Logo anotou em seu bloco de notas no celular o endereço do amado. Pensou com angústia, como falaria com Will sem uso da internet. Olhou para o caminhoneiro: seus olhos pediam por ajuda.

- Dar logo a facada, macho!
Brincou Chicão e deu uma risada.
- Me arranja, por favor, dez reais?
Pediu Oscar envergonhado.
-Deixa a gente chegar em Madalena, que te dou.
Oscar sorriu e não via a hora de chegar em Madalena. Olhou pela janela a estrada e toda paisagem deserta daquele sertão não o entristeceu. O céu , as pedras, o chão, era tudo obra de Deus, esse mesmo Deus que lhe deu Will como oferta e promessa de um amor tranquilo. Agora o menino, cada vez mais, se aproximava do paraíso: Fortaleza. A cidade grande era um sonho alcançável e faria tudo para estar nos braços de Will. Sua imaginação viajava e, como num transe, deu um beijo na boca de seu amado Will.

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