Alegria De Garoto

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Naquela noite, Chicão não dormiu.
Velou toda a dormida do menino.
Em determinados momentos, o garoto gritava alto: "infeliz, não me toque!!!"
Em seus pesadelos, Oscar estava completamente nu e corria freneticamente pela estrada, enquanto um motoqueiro fantasma o perseguia.
O sol demorou para nascer. Quando Oscar acordou, Chicão já estava na estrada rumo a Paramoti. Pouco mais de uma hora, chegaram na cidade. Em todo lugar onde passaram, o clima era sempre árido, no entanto, Oscar gostara daquela cidade. Ao estacionar, no posto de gasolina, foram logo tomar café da manhã. Depois, descarregaram as últimas sacas de grãos em uma bonita fazenda.
Chicão pegou o dinheiro que o fazendeiro deu de cara fechada. Minutos depois, o caminhoneiro e Oscar estavam em uma praça. Resolveram entrar na igreja da cidade. Ao entrarem, estava no término da missa dominical. Ao sentarem no banco colonial, uma paz e uma tranquilidade penetraram no coração de ambos. Enquanto o cansado caminhoneiro orava, lembrou que já fazia um mês que estava na estrada, em companhia daquele garoto, que era como um filho. Como se tivesse acabado de levar um choque recordou: cinco de setembro: "hoje faz dois anos que Otávio, meu filho querido foi assassinado" lamentou-se consigo mesmo. Sorrateiras lágrimas escorriam em seu rosto. Oscar, ao seu lado, se virou e viu os olhos daquele homem repleto de lágrimas. Segurou sua mão, como quem uni as mãos para uma oração. Chicão segurou firme a mão do garoto, mas se manteve de olhos fechados: seus pensamentos estavam em Otávio e seu coração ferido estaria dilacerado sempre. A missa acabara, porém ambos se mantinham imóveis, ajoelhados ao banco. Chicão nunca entendera, porém jamais questionou a vontade de Deus e o porquê de ter tirado seu único filho, "seu homenzinho". Apenas rogava por conforto, pois perder um filho é uma dor imensurável e, seu íntimo, jamais se conformou. Agora ele estava ali ao lado daquele garoto cuja idade era igual ao de seu falecido filho. Questionou, então, a Deus se aquela era sua missão, seja, cuidar para que Oscar chegasse seguro a Fortaleza. "Deus escreve certo por linhas tortas", lembrou da frase que sua mulher sempre dizia. Ao abrir os olhos, Chicão notou que a igreja estava vazia, mas o menino ainda segurava firme suas mãos molhadas de suor.

- Vamos? Disse o caminhoneiro sussurradamente para o garoto.

Oscar, então, abriu os olhos, com o dorso da mão enxugou as lágrimas e os dois rumaram para o caminhão. Ao chegarem no posto de gasolina, o caminhoneiro estacionou o caminhão em meio a vários outros. Foram, juntos, almoçar em uma pequena marmitaria local. Após o almoço, Chicão beliscou o menino e indagou:

- Nós "vamu" corta esses "pêlo" em algum barbeiro por essas "banda", "vamu" chegar em Fortaleza parecendo uns lobisomens não.

Oscar deu um sorriso e com um abraço apertado expressou todo o seu amor por aquele homem rústico que mais parecia o pai que nunca tivera. O gesto tão espontâneo surpreendeu até o próprio Oscar. Tinha certeza que, em seu tortuoso caminho, havia um anjo chamado Chicão.

- E olhe, tem mais viu: hei de comprar uns "trapo" melhor pra gente vestir porque "nós não é nem mendigo", com todo respeito aos mendigos ,é claro, concluiu Chicão.

Oscar, então, deu uma risada alta e o caminhoneiro deu outra gargalhada ainda mais alta. De certo modo, pelo menos, naquele instante, todo terror de ontem não existira e nem cabia naquele domingo de sol porque o povo mais sofrido e também mais feliz do mundo tinha raízes naquele enorme Nordeste de Deus.

Ao chegarem, no que parecia ser a única barbearia do lugar, o barbeiro dormia a espera de uma possível clientela . Oscar cutucou o sonolento, que acordou assustado ao ver aqueles viajantes em seu estabelecimento. Chicão e Oscar logo se apresentaram. O barbeiro, então, rapidamente alegrou-se: adorava tirar prosa com gente de fora.

- "Ocês" vem de que bandas? Perguntou o velho barbeiro, que parecia ter 70 anos.

- Nós "vem" de Crateús, mais já "rondemo" quase esse sertão "todim".
Respondeu Chicão.

- Quem vai cortar o cabelo primeiro cabelo? Perguntou o barbeiro.

- Vá primeiro, meu fii, vou ali molhar o bico, já já chego, falou Chicão para Oscar, que então sentou na cadeira do cabeleireiro. Falou ao profissional que gostaria de corta seu cabelo da forma que o barbeiro achasse. O velhote lançou um olhar de surpresa e falou para o menino:

- Vai ficar "tininum".

Ao chegar no boteco, Chicão logo pediu uma dose de cachaça amarela, que era como se fosse seu uísque. Na segunda dose, começou a prestar uma súbita atenção a notícia que estava sendo dada no rádio. O radialista informava que garoto de 15 anos de idade, de um e sessenta, cujo nome era Antônio Oscar da Silva Araújo, morador de Independência, em Jabuti II, fugira de casa após uma discussão banal com o pai. A mãe, Francisa Madalena, assim como todos os familiares estavam desesperados a procura do menino que, há um mês, já estava desaparecido. Aquilo que acabara de ouvir, paralisou Chicão que, com seu copo vazio na mão, pediu outra dose. Tomou a bebida, pagou a conta e, às pressas, foi rumo onde o menino estava cortando o cabelo. O primeiro pensamento era levar o garoto para a família, embora isso lhe custasse adicionais ao seu sofrido dinheiro, porém, antes, precisava falar com o Oscar. Enquanto caminhava, surgiu, então, o medo de ser pego pela polícia, aquilo o aterrorizava. Quando se aproximou, resolveu que após pegar o menino, iriam a uma loja, como ja havia prometido. Compraria as roupas que Oscar desejasse. Não queria tirar a alegria do garoto, à noite conversariam.

Acendeu um cigarro. Aquilo o acalmou a mente: um pensamento positivo o libertava de todas as ideias negativas, concluiu aliás Chicão. "Estou fazendo por ele o que não fiz pelo meu falecido filho Otávio, remoeu consigo mesmo.

Quando chegou, Oscar já estava de cabelo cortado. Sua aparência estava ótima e aquela imagem alegrou Chicão, pois os olhos do menino estavam outra vez cheios de vida. Quando o barbeiro terminou o cabelo e a barba de Chicão, Oscar notou que ali estava um novo homem. Ao pagar o serviço, o caminhoneiro viu o quanto o garoto estava eufórico para as compras. Em uma lojinha simples, o menino escolheu duas bermudas jeans, duas cuecas e duas camisas, uma preta e outra vermelha. Chicão nada escolheu, pois já havia gastado demais. Pagou, então, para o garoto tomasse um banho no banheiro do boteco. Depois ele mesmo tomou um banho também. Não notaram, mas já escurecia. O caminhoneiro avisou, então, que naquela noite dormiriam em Paramoti. Acharia uma pousada barata para pernoitarem e, logo cedo, pegariam a estrada. Rapidamente acharam uma pousada mais em conta, porém nada confortável.

Após jantarem, voltaram para o quarto. Oscar logo ligou a TV. Chicão acendeu um cigarro, foi em direção a Oscar e o chamou para ter uma conversa séria.

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