Aquele momento de total silêncio crepuscular é, igualmente, fúnebre ao cemitério de gados mortos de seu quintal lá em Jabutí. Na janela do caminhão de Chicão, o asfalto tinha aspecto de algo infinito e triste. Um sentimento de exaustão e desânimo marcou, a ferro, a consciência de desistir de tudo e voltar para casa dos pais. Certamente levaria uma surra, como nunca havia levado antes e aprenderia a ser mais obediente. Na verdade, talvez, tal surra fosse porque ele tinhas nascido errado, como de trás pra frente, mas ele era normal. Estavam perto de Parambú. Chicão deixaria algumas sacas de grãos e lá dormiriam em um posto de gasolina. Oscar nunca havia ido tão longe: o máximo que tinha ido era para a escola lá pelas bandas de Crateús e, agora, estava em uma terra estranha onde a única coisa em comum era a terra seca e o sol infernal. Chicão disse a Oscar qie iriam para lá e, depois, para o distrito de Madalena. O caminhoneiro passaria um dia por lá e depois, seguiria para Fortaleza onde tem família em um bairro da periferia chamado Barra do Ceará.
- Menino você pode ajudar eu a descarregar umas sacas?
Falou Chicão sem tirar os olhos do volante.
- Tá bom!
Respondeu seco Oscar.
-Poderia abrir o bico e falar que danação é essa de ir pra cidade grande sozinho, tem família não menino?
-Olhe ocê cuide de sua vida, mas vou responder por que sou educado.
Chicão virou rápido e atônito para o menino, que até então era dócil e rapidamente se tornara hostil.
- Vou pra Fortaleza por que lá que vou virar gente, por que nesse sertão de Meu Deus, eu vou virar bicho.
- Menino, nos oios de Deus nós é tudo igual!
Falou Chicão como quem quer confortar .
- Mas nos oios dos outros, todo mundo é diferente nessa terra esquecida por Deus.Já estava escuro e havia fileiras de caminhões no posto de gasolina. Parambú era nada diferente de Jaburú, em Independência. Parecia que a mesma pobreza e dureza das terras faziam as pessoas serem mais duras que a própria terra pisada.
Colocou o celular para carregar no posto junto com o de Chicão. Chicão era baixo, de 1,66 cm e de corpo magro e esbelto, suas mãos calejadas denunciavam o trabalho duro e, seu corpo, a má alimentação. Quando acendeu o cigarro, veio logo a lembrança do pai. Oscar pensou: "quando não bebia, painho brincava comigo de tentar pegar a cabra pra amarrar; mãinha matava galinha que dava até uma pena e painho dizia:
- Deixe de ser besta, menino...
Eu ria, e ele ria junto, pena que esses momentos eram raros. Quando vozinha Carmelita morreu, não parou de beber desde então".- Ande pra cá, menino, jantar.
Oscar correu em direção a Chicão, pegou o prato e deu de pau a comer . Matar a fome sempre significava uma vitória .Todos os caminhões enfileirados tornavam aquele local algo sombrio: havia sempre umas mulheres da vida que caçavam homens pra apagar o fogo no rabo e ganhar dinheiro. Depois do jantar, Chicão mandou Oscar dar uma volta e lhe pediu que voltasse mais tarde. O garoto entendeu o recado: o caminhoneiro queria fazer o quê não presta e ele não poderia estar perto. Ganhou cinco reais e foi à uma praça e começou a conhecer Parambú, antes passou no posto e pegou o celular. Ligou os dados móveis e foi direto falar com Will.
"Mais de dez mensagens não lidas, Jesus, Maria e José!!! Era Will muito preocupado pelo seu sumiço, uma vontade imensa de falar que estava vivendo uma aventura para ir para Fortaleza e conhecê-lo. Não falou, ele não tava "online", depois de escrever uma longa mensagem na qual só reafirmava seu amor por ele. Desligou os dados móveis e foi dar mais uma volta na cidade. Em meio à praça, um grupo de adolescentes brincava e ria alto, isso chamou, de imediato, a atenção de Oscar. Uma vontade imensa de socializar com aquele grupo, assim afastaria as sombras da solidão, que o atacava diariamente. Havia cinco meninos e três meninas, aparentemente tinham entre 14 e 17 anos. As três meninas eram altas e morenas, de cabelos lisos, já os meninos eram baixos, exceto um, em especial, que chamou sua atenção pelo porte alto e uma estrutura física de adulto. Sentando a uns 30 metros no banco, Oscar tentava ouvir aquela conversa cheia de risos.Tomou coragem e se aproximou.
- Posso brincar com vocês?
Todos se calaram e olharam para Oscar.
Oscar era um menino de pele branca, mas queimada pelo sol do sertão. Baixo de 1,57 cm e com uns 53 kg.
- Tu é de onde, alma penada?
Falou o garoto alto, que parecia ser o mais velho, bem como o "manda chuva" da turma.Todos riam e Oscar ficou também com certo desconforto.
-Crateús, vim ajudar meu pai, ele é caminhoneiro.
- Mininozim, senta aí e bora brincar.
Oscar olhou, sorriu e notou que a menina, bem mais alta que ele, era bonita: isso o fez corar.
- Olha, macho, tamu brincando de "verdade e desafio": tu roda a garrafa e se der em tu, você decide se quer responder uma verdade ou fazer um desafio.
Assim explicou o líder do grupo.
Ao rodar a garrafa, Oscar sentiu um frio, pois deu bem em cima dele.
- Verdade ou Desafio?
Foi aquela menina que o mandou sentar, falou.
- Verdade!
Oscar gaguejou.
- Essa lombriga é mole, começa logo com medo do desafio.
Todos riam e o menino que aparentava sua idade indagou:
- Bem, você é bicha?
Todos riam e Oscar já estava arrependido de ter aceitado brincar.
- Bicha é o corno do seu pai, infeliz!!!
Gritou e logo se levantou demonstrando coragem sem ter.
- É o quê, fii de uma égua?!!!
Respondeu o menino se aproximando do Oscar.
- Respeite minha mãe, fii de quenga!!!
Desde a noite que brigou com seu pai Oscar havia feito uma jura, diante de Deus e Nossa Senhora, que não deixaria ninguém pisá-lo. Oscar sabia que iria levar uma surra, mas não ia deixar barato.
Quando levou o primeiro soco, o sangue jorrou no chão. Zonzo, ainda levou um chute.
- Briga!!! Briga!!! Briga!!!
Gritavam, em coro, os meninos.
Outro soco e, dessa vez, caiu no chão. Teimou levantar e dar naquele cabra, o que ele merecia.- Deixem o menino, seus fii de quenga ruim!!!
Gritou Chicão, que foi um anjo que o salvou. Os meninos correram, enquanto as meninas ficaram paradas.
- Ora, tu não pode ficar um minuto sozinho rapaz.
Oscar rejeitou a ajuda para se levantar. Engoliu o choro, cuspiu nos machucados e seguiu caminho em direção ao caminhão de Chicão. Calados a caminhar, Oscar mancava porém mantinha o rosto sem qualquer expressão de raiva ou dor: isso lhe dava uma dignidade ao orgulho ferido. Onde estaria Will agora?
Pensou Oscar com o ar denso de saudade.
Tudo que Oscar queria era sua mãe para cuidar de suas feridas, fazer seu mingau de mandioca e falar com Will até madrugada a dentro, mas aquilo era impossível. Uma vontade imensurável e abissal de gritar e chorar e pedir colo quase desconcertou seu papel de bicho do mato, de menino forte que agora se moldava homem. No íntimo, Oscar era uma fera ferida: sentiu-se como um animal abatido para alimentar a fome de terceiros. Um pungente ódio o fez prometer para si mesmo que nunca mais, em sua vida, levaria uma surra sem revidar (aquilo lhe deu certo alívio ao espírito). Olhou pra si mesmo e estava em farrapos: roupa suja, agora rasgada por conta da briga. Teve pena de si mesmo a ponto, de quase, lhe arrancar uma lágrima (aquilo não desfazeria sua máscara de ferro, porém não deixou de doer em seu mais profundo âmago). Queria estar bonito e limpo para Will e não parecendo um mendigo. Outra vez, um sentimento de revolta ousou mexer no papel em que atuava enquanto se aproximava do veículo de Chicão. Os grilos quebravam o silêncio do sertão. Ao entrar no caminhão, o motorista avisou que Oscar poderia dormir, que pela manhã ele estaria de volta, pois ia sair mais cedo estaria de volta. Alí sozinho e desconfortável, Oscar pôde finalmente chorar e gritar sem um palco e público. Chorou e chorou até as lágrimas secarem, depois só soluçou e rezou dois Pai Nossos e duas Ave Marias, e logo adormeceu.
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Dúbia
Short StoryOscar é um adolescente que mora em uma zona rural e não aceita sua homossexualidade por medo de seus pais. Através de Apps de relacionamento, conhece Will. Meses desde então a relação vira namoro. Virtualmente ambientado de juras e promessas de W...