Verdades Secretas

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- Espera, Chicão, vou ao banheiro, interrompeu Oscar.

O banheiro, embora velho, estava limpo. Ao terminar de urinar e lavar as mãos, levou um susto. Um espelho ali, de modo sutil, o denunciara. Há semanas, que mais pareciam séculos, que não via seu próprio reflexo. Sua pele branca era contrária à natureza da terra seca e árida. Estava vermelho, queimado pelo sol, no entanto minutos a fio fixou o reflexo no espelho em direção aos olhos castanhos. Lembrou de Filó que, certa vez, colocou a cachorra de frente ao espelho ansioso por uma reação do animal. Filó pouco deu cartaz o reflexo, aquilo fez o menino ter uma estranha inveja da cachorra. Filó estava livre até da própria imagem que produzia no espelho, e de modo tal queria essa liberdade. Porém estava preso ao próprio reflexo que fez escravo de si mesmo, embora fosse parte de sua composição demasiadamente humana. Olhou, analisou e perscrutou em profunda análise aquele reflexo que mais parecia não ser dele. Notara que, ao tocar o espelho, não tocava sua face avermelhada e exausta, apenas o espelho de matéria oposto a matéria viva. No entanto, aquela matéria não viva foi a coisa mais viva ao ser um fio condutor por revelar que a imagem, embora negasse, era sim, era a sua semelhança. Uma lágrima brotou em seu olho esquerdo. Ninguém viu, mais a coisa sem vida via e nada disse. Aquilo, de modo singular, era seu reflexo, era de uma violência íntima. Com o dorso da mão esquerda, cessou a lágrima enquanto todo movimento estava sendo repetido a sua frente, a matéria não viva se fez viva pois ele deu vida ao que nunca pode viver. Quando deu por si, já estava há vinte minutos no banheiro. Lavou o rosto e desabafou de frente ao espelho: "sou melhor que você!"

Quando voltou, Chicão fumava um cigarro. Veio, então sentou ao seu lado direito na cama e começou a conversa séria.
- Ouvi, no rádio, sobre um garoto que fugiu de casa. Tinha teus traços e teu nome. Sua mãe, dona Madalena, está louca te procurando... O quê me diz, Oscar?
Ao jogar a pergunta, deu um profundo trago no cigarro, levantou a cabeça para atrás e fez duas espirais com a fumaça. Segundos se passaram, Oscar nada falou.
- Olha, meu fii, amanhã te deixarei em Independência e, depois, sigo viagem para Fortaleza, entendeu? Concluiu Chicão, com ar sério e autoritário.
- Não, por favor Chicão! Não posso ir para casa, não agora! Suplicou Oscar.
- Deixe de invenção, menino, amanhã levo tu pra tua mãe, cabra.
Oscar disparou:
- Eu gosto de meninos.
Fez-se um silêncio momentâneo.

Chicão jogou um olhar de extrema estranheza, que cortou Oscar ao meio. Logo se arrependeu pela confissão, mais agora era tarde. Desconcertado, Chicão gaguejou, porém nada disse; não achava palavras e, num instante, o ar ficou rarefeito para ambos.

- Namoro com um garoto, seu nome é Will, preciso encontrá-lo. Ele tem 22 anos, mora na Praia do Futuro. Nos conhecemos pela internet. Com, ou sem você, eu irei ao encontro do meu amado. Sem o senhor, será mais difícil; fugirei outra vez. Depois que conhecer ele, Chicão, volto para meu mundo sem vida, sede e fome, de natureza morta, só deixa eu ser feliz uns minutos com ele. Deixar eu ver o mar porque passei toda uma vida na terra seca, sem sentir a vastidão do mar e do amor.

Pronto, estava tudo dito: aquela confissão foi como tirar um piano das costas de Oscar. Chicão se petrificou com todas as palavras do garoto. Jamais pensou que, em toda sua vida, ouviria aquilo de um menino de 15 anos de idade. Não sabia o que dizer ou no que pensar. Quinze minutos depois, Chicão quebrou o silêncio.
- Vá estudar, menino, pra ser gente, seu pingo de gente. Amanhã, depois do café, vamos para Independência e ponto final e não falamos mais nisso.
Encerrou Chicão.

Naquela noite, enquanto Chicão dormia, Oscar planejava pragmaticamente sua fuga. Depois do café, fugiria. Embora não soubesse como, mas faria. Agora não iria desistir pois estava muito perto. Durante toda a madrugada, pensou e repensou os modos e meios: iria fugir na calada da noite, porém mudou de ideia porque seria arriscado. Chicão estava irredutível, Oscar não conseguia  convencê-lo. Teve uma ideia: depois do café da manhã, na estrada, pediria para urinar no meio da viagem. Quando Chicão parasse o caminhão, ele fugiria, pois o caminhoneiro não largaria o caminhão ali na estrada. Decidido, resolveu dormir porque  já eram três da manhã quando o sono veio. Dormiu e sonhou que caminhava na orla da praia de mãos dadas com Will. No sonho, ele estava imensuravelmente feliz. Cada vez, mais e mais, se aproximava de Will e, finalmente, estariam juntos.

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