Dia 42.
Está cada vez mais difícil fingir que estou controlado pela interferência dos rastreadores. Meu instinto de sobrevivência fala mais alto, porém, sinto que alguns guardas e treinadores estão ficando desconfiados do meu comportamento. Agora que sei que não sou o único, fica difícil esconder minha empolgação e força de vontade para agarrar-me ao último fio de esperança que resta: fugir. Lutar.
Também encontro dificuldades para esconder esse diário. Assim como não foi fácil roubar lápis e papel dos registros do hospital, é complicado arranjar uma brecha para retirar e guardar esse material na laje solta do alojamento.
Hoje encontrei três pessoas conhecidas, mas todas sucumbidas ao estado deplorável que o sistema do rastreador e da Central impõem. Regman, o padeiro, Liam, que muitas vezes trabalhava como mensageiro entre as vilas, ao que me lembro, e um terceiro homem que não sei o nome, mas que tenho certeza de que era filho de um velho camponês de uma vila não muito longe da minha. Cada rosto conhecido que aparece por aqui me traz dor e angústia. E ansiedade, também, porque nunca sei quem está bem ou dominado.
Demorei cerca de quinze dias para perceber que Toby, Brenan, Luigi e Wayman não haviam sido atingidos. Nossos momentos sozinhos são breves. Ainda não conseguimos estabelecer nenhum tipo de plano ou código de comunicação. A única coisa que temos em comum é o fato de concordarmos que precisamos de mais gente como nós. Somos muito poucos para agir. Mas o suficiente para tentar uma fuga, contudo. Estamos estudando as possibilidades com cautela.
De todas as coisas em que penso nesses dias em que estou aqui, Raelene e Artur vêm sempre em primeiro lugar. Não há um minuto sequer que deixo de olhar para a marca clara que há em meu dedo, o local onde a minha aliança ficava. E, das coisas das quais me arrependo, são duas: ter tirado esse anel antes de ir trabalhar e nunca ter mencionado à Raelene o desaparecimento de dois companheiros de Ponta Quebrada em dias antecedentes ao que fui trazido até aqui, além dos vários rumores nos arredores a respeito de desaparecimentos por lá.
É incrível como esses pequenos detalhes fazem a diferença. Não era raro eu retirar minha aliança em dias de trabalho pesado depois de quase perdê-la no lago por diversas vezes. Foi comprada com suor. E, por isso e pelo amor à minha mulher, possuía uma representatividade imensurável em minha vida. Agora, nem isso tenho para me lembrar dos dias áureos que vivi. Também não era raro eu omitir acontecimentos de minha família. Quantas e quantas vezes eu não compartilhei à mesa acontecimentos do mundo real com minha família. Artur, meu pequeno, sempre tão pensativo e um tanto quanto alheio à esses fatos de dimensão maior, me pergunto quanto ele terá me escutado para reagir quando a guerra estourar. Não raramente penso que gostaria de tê-los feito saírem mais de casa e da zona de conforto oferecida pela vila. Coloquei-os em uma redoma. Paguei o preço.
Não quis assustar minha mulher e filho contando bruscamente do desparecimento, quase na mesma data, de dois homens com quem trabalhava. Abandonaram família, serviço, a vida, e não porque quiseram. Mal sabia que comigo aconteceria o mesmo depois de não muito tempo. Não quis assustá-los com o que não passava de boatos, também. Mas as notícias correm. Raelene e Artur devem ter ficado sabendo de algo a essa altura. De alguma maneira, eles saberão que eu jamais os deixaria por vontade própria.
Reitero aqui que, de ambos os companheiros desaparecidos, nunca vi nem a sombra por aqui. Rezo para que o destino deles tenha sido razoável, embora eu tenha certeza de que não foi melhor do que o que eu enfrento agora.
Preciso ir. O toque de recolher vai soar em instantes. Se eu for embora daqui, em algum ponto; se alguém descobrir a verdade e os esquemas por trás do que chamam de Nova Era, espero que esses escritos sejam mais uma prova a respeito do horror a que todos nós fomos expostos. Não há homem que resista e saia intacto de tamanha pressão.
Espero que eu consiga, pelo menos, conservar a minha essência.
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Crônicas da Nova Era - A Busca
FantasyLIVRO 1. Artur levava uma vida tranquila em uma vila sem nome até o desaparecimento de seu pai. Quando pensa em obter respostas para o acontecimento, acaba sendo levado até elas de forma inesperada e descobrindo algo muito maior por trás do que real...