Você não precisa dizer nada.

10 2 2
                                    

Os meses seguiram sem nenhuma mudança muito alarmante. No bar as coisas continuavam calmas e estáveis. Eu conversava com Eric, tínhamos nos aproximado muito e pelo tanto que conversamos, acho que posso considera-lo meu amigo, mesmo que eu ainda guarde para mim coisas sobre o acidente e os meus pais. Com Gustav estávamos na mesma, hora conversamos civilizadamente e conseguíamos rir juntos, hora estávamos nos atacando verbalmente, mas nada muito ofensivo essa nossa atitude ficava mais para manter o costume do que qualquer coisa. Já com a Sabrina preferi deixar tudo como estava, não nos falávamos e eu não fazia questão de mudar isso.

Em relação a minha vó, estávamos nos aproximando mais, almoçamos uma vez por semana em um restaurante no centro durante o horário de almoço dela. Nós estávamos conseguindo pagar pouco a pouco todas as contas, então nos demos esse luxo uma vez por semana, mesmo assim economizamos ao máximo, já que as contas do hospital são pesadas. Beatriz e Kiara estão sempre comigo, depois delas terem se acertado das brigas as coisas ficaram mais tranquilas, e quanto a Lucca nos afastamos um pouco. Ele está em um tipo de turnê com a banda dele, não sei explicar bem. Com tudo, minha vida está bem e entrando nos eixos. Pela primeira vez em toda minha existência comecei a gostar e me acostumar com a rotina.

Eu estava em mais um fim de expediente conversando com Kiara, Beatriz e Gustav, coisa que se tornou comum em todos os últimos domingos.

- Eu não acredito que parei de trabalhar no mercado, meus pais vão me matar – Kiara comentou rindo.

- Amanhã eu tenho uma prova de direito penal, eu que tenho mais chance de morrer – Beatriz disse. Ela é única de nós que faz faculdade. – Minha consciência começou a pesar agora, preciso ir para casa.

- Não sei se devo voltar para casa, minha vó quer que eu arrume o quarto – Falei me deitando no capo do carro.

- Não julgo sua vó, aquele quarto parece que tem radiação – Beatriz cutucou, enquanto caminhava com Kiara para o carro dela, eu estava no carro do Gustav. Nós quatro nos despedimos, restando apenas eu e o tatuado ao meu lado.

- Será que devemos ir para casa também? – Perguntei olhando ele.

- Você quer? – Rebateu com uma pergunta e eu neguei – Então ficamos por aqui.

- Não vai ter nenhum problema para você?

- Não. – Falou nos deixando por um tempo em um silêncio acolhedor da noite – Você nunca diz nada sobre você.

- Nunca? Que exagero. Sempre falo de coisas que eu gosto, você que nunca diz nada.

- Que exagero – Repetiu o que eu havia dito me fazendo ri e encarar seus olhos castanhos que brilhavam por conta da luz vinda do poste – Porque tanta tatuagem?

- Não sei, não tem nenhum significado muito profundo – Falou com sinceridade e começou a se autoanalisar – Acho que essa é minha favorita – E esticou o braço na minha direção para que eu visse. Estava escrito "Get cake,Die Young".

- Você realmente quer morrer ? – Perguntei tocando com calma todas letras desenhadas em seu braço sentindo sua pele fria em meus dedos e logo em seguida o olhei, para ouvir a resposta.

- Talvez. Quer dizer, nós todos queremos morrer.

- Faz parte do ciclo, mas morrer jovem? É realmente seu plano?

- Talvez – Respondeu curto travando seu maxilar e olhando para as poucas estrelas do céu

- Porque talvez?

- Não existe uma resposta exata para mim, só acredito que o mundo é solitário. Eu sou um cara solitário.

- Eu sei! Então encontre uma garota solitária.

- Não era você que não acreditava em amor, casamento? – Perguntou com um sorriso desafiador em seus lábios. Por impulso revirei os olhos.

- Eu sou a exceção da regra, é isso – Expliquei como se fosse óbvio e ele deu uma gargalhada, que por acaso era muito boa de se ouvir.

- Não é – Brincou se sentando mais próximo de mim – Posso te fazer uma pergunta? – Indagou com a voz branda. Eu apenas assenti com a cabeça – Como você ganhou essa cicatriz? – Apontou minhas costas. Por conta do uniforme, parte dela ficava exposta.

- Eu nunca conversei sobre isso, foi no acidente – Após ter falado me calei sentindo meu coração bater mais forte. Lembrar do acidente ainda tirava o sono.

- Não sei se deveria perguntar mais.

- É tanto drama, que você perderia a paciência – e dei um riso amargo, coisa incomum vindo de mim.

- Como aconteceu? – Perguntou sem expressar nenhum sentimento. Travei por alguns segundos.

- Nós capotamos com o carro, ninguém até hoje sabe o motivo. Meu pai não estava embriagado ou o carro com falhas mecânicas, nos poucos segundos do que me lembro daquele dia é que estávamos calmos no carro. Não teve conversa. Não teve despedida. Para não me contradizer, posso afirmar que houveram gritos – e mantive meu olhar fixo no asfalto, me segurando para não deixar nenhuma lágrima escapar – O pior de tudo é que eu consigo ouvir a voz da minha mãe gritando pelo meu nome, tem dias que isso me tira o sono e parece tão claro na minha mente.

- Eu não sei o que dizer.

- Não tente. Você não precisa dizer nada – Murmurei.

Antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, senti seus braços se enrolarem por volta do meu corpo me trazendo depois de muito tempo conforto, não que eu não sentisse com a minha vó, mas foi bom ter alguém que não estivesse passando pelo sentimento que eu. Sempre me segurei para que ela pudesse passar pelo seu luto. Acho que foi muito mais difícil para ela, nós sempre conseguimos nos imaginar perdendo nossos pais em algum momento da vida, por mais que seja doloroso, mas nunca ninguém pensa isso sobre o próprio filho e filha, seria egoísmo eu por todo meu sentimento a cima do dela.

- Obrigada – Cochichei em seu ouvido.

- Não foi nada – Cochichou ainda mais baixo que eu.

Pouco tempo depois ele me levou para casa, não conseguimos conversar muito, até que foi bom, na verdade, a melhor coisa na minha opinião. Já era estranho ter contado para alguém pela primeira vez, por mais que um, um peso pareceu ter saído das minhas costas. Gustav estava sendo bom para mim.

Comprando estrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora