Se o desaparecimento de pelo menos um quinto do mundo foi o acontecimento do ano passado, como posso sintetizar esses últimos dez dias para tentar acalmar os nervos? Até que estou um bocado feliz de ter colocado o diário na mala.
Este ano já começou com um batismo de sangue, colocando de forma poética. Nesses dias que não escrevi foi por que não consegui, meus nervos estavam um trapo e minha cabeça era pura loucura tentando achar minha mãe, ter qualquer notícia dela e das meninas. Da noite da virada até ontem, eu devo ter dormido no máximo umas seis horas e meramente por exaustão.
É complicado aceitar que sua família virou estatística. Não éramos tão próximos, começamos a nos reaproximar no natal apenas. Eu não sabia nada sobre a Djennifer, nem sobre a Taisa... Mas pareceram pessoas super legais, super humanas. Me acolheram tão bem e com tanto carinho, que nem a minha mãe. Agora, não vão mais voltar, são estatísticas do plantão da televisão.
Mas eu preciso seguir em frente. Eu preciso levantar a cabeça. Parece que estou me sobrecarregando de novo para não pesar a barra pra ninguém. A Laura precisa de mim, porque não conseguimos falar com a Clara; o Thiago perdeu os primos e o pai na tragédia... Não posso ficar parecendo fraco quando todos estão tentando ser fortes.
É inacreditável que bem na virada do ano, no meio da queima de fogos, um tsunami enorme atingiu toda a costa do Brasil, varreu todo o litoral baiano do mapa. Simplesmente não existe mais. Salvador não existe mais. Não somente ela, mas Santos, Rio De Janeiro, Espírito Santo, todo o litoral brasileiro não existe mais, na verdade. Simplesmente tudo engolido! Foi tão ridiculamente chocante que não tem nem um jeito melhor de encarar isso. O exército havia evacuado suas bases dias antes, mas ninguém avisou o povo e as baixas são históricas. Na verdade, é incalculável.
Já fazem dias que o país está puro caos, logicamente. Brasileiro não sabe lidar com tragédia nem pequena, magina com uma dessas, de proporção continental? Na verdade, não foi nem só aqui, isso que é mais aterrorizante. Países inteiros como Cuba e México sumiram. Ilhas não tem mais nem sinal, Flórida, Miami e outros litorais dos Estados Unidos também desapareceram.
As mortes foram tantas que batem na casa dos milhões. Milhões de pessoas só no maremoto, mais alguns milhares na histeria coletiva que ainda tá rolando. Todas virando o ano juntas, no mundo inteiro. Talvez, se contar todos os locais afetados, tenha alcançado a marca dos bilhões.
Agora que estou escrevendo, recontando isso, de repente parece um pouco mais real. É diferente ver essas palavras saindo das minhas mãos do que ouvir o jornal dizendo os pontos afetados, mostrando os estragos, prédios cobertos de água e destroços boiando onde havia uma cidade. Talvez seja apenas impressão minha, mas há algo estranho nas notícias... Não parece tão grave quando eles contam, mesmo quando dizem "a cidade tal foi engolida, tantos morreram, os bombeiros e o exército estão usando barcos e tal". Parece ridiculamente frio, quase como se os jornalistas sentissem algum prazer sádico de contar a tragédia porque dá mídia, com números sempre inflamados. Não ouvi dizer se houveram sobreviventes até agora... E tenho pensado muito nisso, porque, no fundo, eu gostaria que minha mãe e minhas irmãs sobrevivessem, como qualquer outra pessoa que perdeu seus entes queridos. O pior é que nenhum cientista sabe o que aconteceu, de onde veio ondas tão gigantescas. A previsão do tempo não previa uma porra de uma onda de trezentos metros ou sei lá. Estão dizendo que foi uma série de vulcões no meio do oceano que resolveu entrar em erupção do nada. Ao mesmo tempo. Na porra do mundo todo e simplesmente nenhuma alma pensante em qualquer lugar do mundo se importou de avisar os cidadãos. Por falar nisso, ninguém falou nada do Japão, vou ver se encontro notícias.
É bem óbvio que Manhattan desapareceu, a Laura não come direito de tanta tristeza por perder toda a família de uma vez, já que os pais dela são de Nova York mesmo e ainda não conseguiu saber nada da namorada. Não conseguimos voltar para São Paulo também e acho que nem vai dar tão cedo. O tráfego aéreo está impossível (ou talvez os pilotos já estivessem notícias do que estava vindo, quem sabe?), as linhas de ônibus completamente congestionadas, as estradas cheias de assaltantes e acidentes um pior que o outro, caos define este país. Hoje tentei falei com a Laura e pedi para ficarmos onde estamos mais algumas semanas até que tudo se acalme, porque no fim, ela também tem que se programar. Eu resgatei alguns investimentos para não pesar muito no bolso dela, já que não sei como é que vão ficar meus pagamentos daqui por diante e se tem uma coisa que me tranquiliza é ter dinheiro.
Estou tão assustado. Nossos celulares não funcionam, todas as redes de 6G e wifi não estão mais pegando, sem isso a gente não pode pagar por nada. Bom, sorte de quem tem o IQ code no braço, mas acho que nem eles vão conseguir comprar bosta nenhuma sem energia. Pelo menos, aqui no interior ainda tem alguma coisa funcionando a maior parte da noite, é quando podemos ver um pouco de TV e de resto é radinho de pilha bem século passado. Eu espero que resolvam isso logo.
A família do Thiago tem sido muito gentil conosco, e ele tem me dado uma força extrema. Nunca conheci um cara tão legal assim, mas acho que nunca passei por uma situação tão surreal assim também, fora o desaparecimento do meu boy. Nem vou falar nada de namoro mais, mas não quero ficar sem ele.
Eu preciso me manter firme. Logo tudo vai ser resolver.Ao menos, é nisso que quero crer.
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2033 [EM EDIÇÃO]
Science FictionO que houve com o mundo? Como é possível tantos bilhões de pessoas desaparecerem do dia para a noite - vivos e mortos? Após meses de profunda depressão, no intuito de tentar se reerguer na virada do ano, Guilherme se vê envolto ao nascimento dolor...