24/02/2031 - Fio cortado

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Finalmente já está quase dando o tempo que o presidente Yoshua nos deu para o controle do caos e durante esse tempo de espera não havia muito o que escrever e nem tempo para ficar parado.

Especialmente com toda a correria do funeral às pressas que tivemos que fazer, mas isso foi só ontem mesmo.

Não era assim que eu queria abordar esse assunto, mas quanto mais minutos se passam e eu olho para esta folha, menos sei como dizer e começo a chorar de novo, então vou ter que ser o mais bruto que consigo comigo mesmo, talvez assim consiga lidar melhor eventualmente.

A Laura se foi. Ela se matou alguns dias atrás, de noite.

Minha melhor amiga, minha chefe-quase-sócia... A mulher mais forte e foda que eu já conheci nesta vida simplesmente não existe mais.

O pior é que fui eu quem encontrei o corpo. Ela estava de olhos abertos, encarando sem expressão alguma o teto fixamente. Sua pele já estava completamente sem cor e havia uma poça enorme de sangue ao redor do pescoço dela, onde o corte na jugular foi feito; e outra de mijo e fezes sujando todo o resto. Na verdade, foi o cheiro que me fez ir lá no quarto dela, pois nos últimos dias ela enxotava qualquer um que tentasse entrar lá e só saía para comer tarde da noite, quando achasse que todos estavam dormindo.

Eu dei o maior xilique quando a vi daquele jeito. Acho que nunca fiz um escândalo desses em todos esses anos, tentei até mesmo fazer massagem cardíaca nela, se me lembro bem. Não podia acreditar que ela estava morta, sabe? Não dá, não entra ainda na minha cabeça, mesmo me forçando a reviver tudo, mesmo escrevendo tão grosseiramente sobre isso.

Eu acho que já falei da ironia que é tudo o que aconteceu com ela, todo esse desastre no Brasil, no mundo, uma coisa tão absurdamente cruel que minha amiga tenha entrado em tamanho desespero ao não aceitar que a esposa podia estar morta que chegou a esse ponto. Não pensou em mais nada, não pensou na empresa, não pensou numa probabilidade mais otimista; ela só se fechou num turbilhão de negatividade que contraria tanto tudo o que ela sempre disse e fez que me assustou muito e, de certa forma, abalou minhas estruturas. 

Tenho plena consciência de que sou uma pessoa egoísta e horrível, não sei bem como melhorar isso, porém, tenho tentado. Tentado de verdade melhorar... Vim tentando fazer isso para que a Laura tivesse mais esperança de que tudo ficaria melhor logo e mesmo assim foi em vão. Eu não sei como suportar daqui por diante. O Thiago é um cara maravilhoso, de verdade, mas... Talvez por isso eu tenha tanto receio. Não quero deixá-lo mal e agora não tenho mais certeza de nada.

Eu li no celular da Laura o texto lindo de despedida que ela deixou para mim e para a Clara, pedindo perdão para nós por não querer mais continuar. Será que é muito errado eu não aceitar isso? Porém, aceitando ou não aceitando, que diferença faz?

Ela se foi.

O clima está horroroso aqui. Cavamos uma cova improvisada num lugar lá longe no jardim, mas ninguém está conseguindo sequer se falar. É horrível.


Nossa única fé é no presidente Yoshua. É tudo o que temos, por enquanto.

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