Cena do assassinato: mochila, cevada e suicida

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    Ela nunca foi de grandes emoções. Não tinha uma vida desregrada. Ela só observava o mundo.

Caso 1:
    Estava na casa de uma amiga ouvindo uma conversa dela com seu avô. Era sobre riscos. A menina queria fazer bungee jumping e seu avô usava todos os argumentos para convence-la
"É perigoso!"
"Mas tem guia" 
"Mas não é totalmente seguro"
"Minha amiga foi e deu certo"
"Por que não faz outra coisa?"
"Eu quero pular"
    Como o homem gasta tanto dinheiro para arriscar a própria vida? Não há nada mais barato pra sentir a  morte correr em suas veias?

Caso 3:
    Estava num ponto de ônibus lotado, não era um bom dia. Primeiro achou que fosse resolver algo em 15 minutos e demorou 2 horas. Depois achou que fosse resolver algo em 2 horas e demorou 4.
Bem, voltando ao ponto: O primeiro ônibus estava lotado. Pegou o segundo com uma pequena folga, apesar dele deixa-la mais longe de casa. Frustrou-se: logo depois o ônibus encheu.
    Olhou para a janela. Frustrou-se: passou outro ônibus que deixaria-a mais perto de casa.
    Olhou o relógio, calculou o horário. Frustrou-se: poderia chegar mais cedo se fosse direto de ônibus e não tivesse que andar o trecho que ainda andaria.
    Foi pro meio do ônibus, velhinhas estavam conversando sobre doenças. Frustou-se: como ainda podem acreditar que epilepsia e depressão era causado por algo espiritual? Pela falta de Deus? E a pessoa por ter uma vida difícil teria vontade de se matar? Ela estudava no colégio mais abastardo da cidade e conhecia a depressão lá dentro, onde estavam os "de bem de vida".
    O ônibus foi esvaziando, agora podia até andar lá dentro. Apoiou na janela, ela só queria chegar em casa. Frustrou-se: um bêbado colocou uma lata de Brahma num canto.
    Era seu estopim. Ela começou a avaliar a situação. Julgar os riscos, calcular sua felicidade daquele dia, a julgar seus atos e frustrações gerais de todo um ano. Foi um ano muito cansativo. O vestibular havia passado e ela havia atingido seus objetivos daquele ano, ela já estava meio morta. Qual seria o preço de ir pra casa e carregar a imagem da latinha jogada? Qual seria sua felicidade em devolve-la pra quem a esqueceu no ônibus?

    E

    E ela foi devolver, envolvida por cansaço e raiva.
Mas o homem estava bêbado. O homem era forte. O homem não estava sozinho.
    "Boa noite, senhor desculpe incomodar, mas acho que esqueceu sua lata. Por favor, não suje o ônibus."
    Seu suicídio.
    Ela foi pro fundo do ônibus. Carregou o sentimento de vingança.
    Pobrezinha.

    E o homem repetia na sua conversa:
"Lata"
"Lata"
"Porque a mulher me devolveu a lata"
"Lata"
"Eu não vou deixar isso assim"
"Lata"

    O ódio passou, o medo passou a crescer na menina.
    E ela ia soltar num lugar meio escuro.
Calculou: "se ele levantar antes, eu saio depois. Se não levantar, saio num lugar mais cheio de gente... Mas e se ele me seguir? Sairei no próximo se alguém for sair comigo, saio no meio das pessoas, meio empurrando para ter a quem pedir ajuda"
    E foi, saiu. Achou que havia dado certo, que o homem não sairia atrás.
Olhou pro ônibus que passava:
O homem não estava mais lá.

"Estudante de Olinda é assassinada
na noite de 3 de dezembro"

O homem já estava ao seu lado.
Ao meu lado.

—Boa noite, menina. Você me deu uma aula de educação [...] Eu também não gosto de quem joga lixo na rua, nunca jogo... é que o ônibus estava cheio e eu estava com medo de segurar.
—Desculpa, eu estava realmente com medo da reação do senhor. Agi muito no impulso hoje... To bem cansada...
—Não, eu sou novo. Eu estou sempre aprendendo. Você me deu uma grande lição
—É...
—Quer tomar uma coca?
—Preciso ir pra casa
—Cuidado com quem você fala na rua, eu estava bêbado, mas vai que eu cheirava ou fumava, você tem que ter cuidado
—É, eu sei...

Eu sei...

Eu podia ter morrido hoje
Eu podia ter morrido ontem, mês passado...
Se eu posso morrer, sorrio
Estou viva

Tudo: um grande nadaOnde histórias criam vida. Descubra agora