XXVIII. Allyria de Drunkar

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Ela sempre estava atenta, mesmo quando dormia. Allyria foi treinada para sempre estar pronta para a luta. Ela dormia quando sentiu uma mão passar pelo seu cabelo, sentiu a mão descer pelo seu braço.
- Espero que saiba o que está fazendo - Ela disse de olhos fechados.
- Hoje é o festival - Glenn disse no ouvido dela - Hoje é um dia especial e quero que seja especial para você também.
Allyria se virou para ficar de frente para ele.
- Você sabe o que seria especial para mim?
Glenn não respondeu.
- Sua morte - Allyria disse quase sussurrando.
Eles estavam na cama de casal do quarto do navio cinzento. Ela estava impaciente dentro do seu cativeiro, fazia dias que não saia e respirava o ar puro. Cada segundo naquele maldito quarto era com uma maldição. Suas emoções estavam à flor da pele, um guerreiro não havia sido feito para ficar em um redoma. E ela esperava ansiosamente, por sua liberdade ou a morte de alguém, até mesmo a própria morte. Algo tinha que acontecer, se não ela enlouqueceria.
A tempo parecia não passar naquele lugar.
- Eu não duvido disso - Glenn sorriu ironicamente - Quero mostrar você para o povo, quero que vejam o nosso poder juntos!
Ele se levantou da cama, estava vestindo apenas uma calça simples. A felicidade estava estampada no rosto dele. Mas, Allyria via ali ao de errado. Ela podia sentir em suas veias.
- Eu não tenho poder - Allyria se sentou na cama.

Você está me chateando com todo esse papinho - Glenn disse abrindo o baú próximo para se trocar - Vou ter que resolver o seu temperamento.
- Se pretende colocar o colar em mim, não vai funcionar - Ela abraçou suas pernas, apoiando sua cabeça nos joelhos.
- Será mesmo? - Glenn a olhou pelo canto do olho - Talvez você veja o bem que quero fazer nesse mundo.
Ela não respondeu.
- Vou trazer o café da manhã e chamar Cece - Ele colocou sua camisa e sua típica jaqueta preta.
Glenn saiu batendo a porta.
Ficar sozinha naquele quarto era o paraíso. Ela se encolheu e fechou os olhos rezando para que conseguisse sair daquele lugar. Mas, parecia que sua fé não era suficiente já que até o momento não havia sido atendida.
Um gemido de dor fez com que a guerreira ficasse alerta.
- Vocês não podem fazer isso! Vocês não podem fazer isso! - Celenia gritava.
Allyria puxou sua corrente o máximo que pode para se aproximar da porta do quarto onde a menina se encontrava.
- Celenia? - Allyria perguntou receosa.
Silêncio.
- Quem está aí? - A garota perguntou.
- Sou Allyria de Drunkar - Ela respondeu.
- Allyria - A menina repetiu - Que nome bonito.
- Você está bem?
- Você é a guerreira não é? - A menina perguntou com a voz rouca e baixa.
- Você é a vidente aqui, você deveria me responder - Allyria dizia olhando para a porta, com a esperança de que nem Glenn e Cece chegassem naquele hora.
- Não sei de muitas coisas - A menina tossiu - Não sou uma vidente por inteiro.
Mais tosse.
- Você precisa me ouvir - Pausa - Não sei te dizer o que será feito - Respiração pesada - Mas, um mal grande se aproxima de você.
- Já estou com esse mal - Allyria revirou os olhos.
- Não - Allyria ouviu uma movimentação do quarto ao lado - Você não me entendeu. Você precisa fugir agora. Agora. Agora. Agora.
A urgência na voz da menina chamou atenção da guerreira.
- O que eu vi, parecia a morte se aproximando - Celenia disse com a voz fraca - Eu avisei minha mãe, avisei ela.
Mais movimentação, a garota não poderia se levantar, ela estava amarrada e fraca. Até que Allyria escutou barulho de pés tocando o chão de madeira, a guerreira arregalou os olhos. Como aquilo era possível?
- Não se levante! - Allyria disse preocupada - Você está fraca, fique onde está.
- Eu preciso te ver - Celenia disse fraca - Eu preciso confirmar se era você.
- Você vai morrer! Pelos Deuses! - Allyria disse indignada.
Um som alto de queda e gemidos logo em seguida. Celenia havia caído no chão.
- Celenia? - Allyria perguntou sem obter resposta - Celenia?
A guerreira engoliu em seco.
Celenia tentou rastejar até a saída do pequeno quarto, mas, a visão da garota começou a embaçar, ela podia sentir ele se aproximando, ela podia sentir o seu pai entrando em seu corpo sem pedir licença.
Allyria escutou um grito de terror. A guerreira não conseguia ver o que estava acontecendo com a menina, mas, sabia que a situação não era a das melhores.
De repente os gemidos pararam.
- Celenia?
Silêncio absoluto.
- Você quer que eu chame sua mãe? - Allyria perguntou desesperada, não sabia o que poderia fazer para ajudar.
- Não há necessidade - Uma voz grossa respondeu.
Na porta do quarto adjacente estava Celenia em pé e a olhando com um sorriso maligno nos lábios. O que mais assustou Allyria não foi a menina esquelética em pé na sua frente ou a mudança de voz. Foi os olhos da garota, antes revestidos de branco, agora estavam negros, mais negros que a noite e as veias dilatadas dava um tom arroxeado no rosto todo.
A guerreira tinha certeza de que aquela não era a Celenia. A energia maligna que aquele ser exalava era intensa.
- Minha mãe já morreu, faz muito tempo - O ser no corpo de Celenia se aproximou de Allyria, que acabou dando um passo para trás.
- Quem é você?
- Que guerreira esperta - Celenia abriu toda a boca mostrando os dentes - Eu sou Cael o sumo sacerdote de Norrad, o pai de Celenia.
- E o que você quer aqui? - Allyria cuspiu.
Aquela magia de possessão deveria estar cobrando um preço muito alto para os dois, logo o sumo sacerdote não ficaria muito tempo ali.
- Vim ver como nossa guerreira está - Os olhos negros a encaravam com obsessão - E ajudar na sua colaboração.
A porta do quarto foi aberta e Glenn entrou com uma bandeja de comida nas mãos. Ele se assustou com a garota de pé no meio do quarto, mas, assim que viu os olhos malignos compreendeu do que se tratava.
- Demorou dessa vez - Glenn se dirigiu a Cael - Achei que viria mais cedo.
O caçador fechou a porta e colocou a bandeja na escrivaninha.
- Estive esperando por esse dia, a energia de hoje intensifica os sacrifícios.
- O que planeja fazer? - Glenn se aproximou de Cael.
A menina fez um sinal na testa do caçador dando uma benção.
- Vim ajudar com a guerreira - Celenia voltou a observar Allyria - Mas preciso que você a segure, o corpo da minha filha está muito fraco.
Allyria os encarou com raiva. Ela estava a deriva, o que poderia fazer ali? Estava presa e sem saída. Não teria escapatória. Onde estavam os Deuses nessas horas?
Glenn se aproximou cauteloso.
- Fique quieta e colabore com seu mestre - A voz do sumo sacerdote disse através de Celenia.
- O que vocês querem de mim? - Allyria disse observando o cenário, procurando por alguma salvação, estava desesperada - Se tocar em mim vai perder essa mão!
Assim que Glenn tocou seu braço direito, a guerreira reagiu. Ela se agarrou ao corpo dele e girou, com a intenção de machucá-lo com a corrente encantada. Mas, o caçador era esperto, foi treinado para várias lutas. Ele a puxou ao contrário e deu um soco no pescoço da guerreira. Allyria era uma iniciada, um soco de um humano qualquer não poderia machucá-la. Porém, aquele não foi um soco qualquer. Ele conseguiu juntar uma quantidade ínfima de energia, fornecida pela pulseira da Deusa Azlyn, e a acertou.
Ela sentiu gosto de sangue na boca.
A energia daquele item era tão forte que a jogou contra a parede do quarto.
Dor e frustração a envolviam, ela estava perdida.
- Posso fazer isso pelo resto do dia - Glenn disse rindo da frustração da guerreira.
- Tenho certeza que pode, mas, eu não posso - A voz grossa preencheu o quarto - Ande logo com isso.
Allyria caiu de bunda no chão, pode sentir uma lágrima rolando pela sua bochecha. Ela não deveria demonstrar fraqueza para eles, mas, o desespero era maior.
Glenn a puxou pelo cabelo a arrastando até o sumo sacerdote. Ela abaixou a cabeça para que não vissem sua dor, mas, assim que ficaram de frente para Celenia, Glenn puxou sua cabeça para cima.
A corrente que a prendia estava esticada no máximo, forçando seu braço.
- Muito bem - O sumo sacerdote disse com prazer - Olhe para mim.
Allyria tentou virar a cabeça, mas, Glenn a forçou a ficar parada.
- Olhe para mim! - Cael disse com raiva - Escolhido me de seu punhal.
- Por que? O que vai fazer? Se você matá-la... - Glenn disse desconfiado.
- Confie em mim, eu nunca desapontei você - Cael o encarou - Não seria agora que destruiria nossa salvação.
Glenn entregou um punhal curvo na ponta para Celenia possuída.
A boca da menina deu um sorriso maligno. Celenia encarou a guerreira com aqueles olhos negros vazios e começou a recitar algum encantamento, uma língua antiga e profana. Allyria nunca tinha ouvido aquelas palavras, mas, sabia que não eram benéficas.
A menina magra e muito fraca na sua frente, levantou o punhal e assim que terminou de recitar o encantamento, abaixou o punhal no coração da guerreira, no local exato da sua marca. Allyria sentiu uma dor absurda, a dor da iniciação era pequena se comparada com aquela. Ela gritou de susto, tudo havia sido muito rápido. Ela pensou que morreria ali, com aquela dor. Mas, alguma coisa pareceu se apossar do seu corpo. Como uma sombra, algo se estreitou no local do punhal. Uma energia pequena, mas, que exercia poder. Era trevas. A guerreira tentou lutar contra aquilo. Tentou expulsar a energia estranha do seu corpo. Mas, aquele ponto de poder maligno era mais forte. Ela conseguiu sentir quando perdeu o controle sobre si. Era como se ela estivesse ali e ao mesmo tempo distante. Ela sabia o que estava acontecendo, porém, não tinha controle.
O sumo sacerdote no corpo de Celenia tirou o punhal devagar. Ela sentiu a dor indo embora dando lugar ao desespero.
- Allyria, levante - O sumo sacerdote deu um comando.
Ela se levantou. Mas, não por que quis, era por que ele deu um comando para as trevas que estava dentro dela. Ele estava a controlando.
A guerreira tentou falar, gritar, xingar, mas, nada aconteceu. Não era mais ela que controlava seu corpo.
Glenn a observou fascinado.
- Agora ela me obedece? - Glenn perguntou ao sumo sacerdote.
- A consciência dela ainda está aí, mas, não é ela que dá as ordens - O sacerdote explicou - Ela agora é toda sua.
- Ótimo - Glenn sorriu.
Allyria queria gritar de terror. Mas, as trevas a impediu.
***
A corrente encantada não era mais necessária, já que ela não conseguiria fugir por conta própria. Ela havia se tornado uma casca vazia. Ela não tinha mais vontades. As trevas havia tomado conta do seu corpo.
O sumo sacerdote deixou o corpo da própria filha, o que fez com que Celenia ficasse ainda mais fraca. A guerreira tinha razão, aquela magia cobrava um preço muito alto. E o que a deixava ainda mais com raiva, como um pai poderia deixar aquilo acontecer com sua filha? Ia totalmente contra a sua moral.
Glenn pediu que arrumasse a guerreira para o festival. Deram banho nela, trocaram seu vestido por um vestido ainda mais glamuroso, pentearam o seu cabelo, passaram cremes e mais cremes pelo seu rosto. E ela não disse uma palavra, agiu como se gostasse daquilo, como se esperasse por isso. Mas, não era ela.
Assim que Cece colocou um espelho na sua frente, a guerreira sentiu medo. Medo de verdade.
Seus olhos não estavam mais vermelhos. Eram pretos, pareciam dois buracos vazios. Aquela não era ela. E o seu rosto sorriu, o mesmo sorriso sombrio de Glenn.
- Você não sabe o prazer que estou sentindo de te ver assim - Cece disse maliciosa.
- O prazer que eu sinto é maior minha senhora - As trevas respondeu com a sua voz.
Era um pesadelo, tinha que ser. Allyria gritou, gritou e gritou com aquelas trevas. Tentou quebrar aquele muro em sua mente, mas, nada o que fazia parecia ter efeito. Mas, ela não desistiria, aquilo tinha um ponto fraco e uma hora ela iria descobrir.
***

Glenn a tirou do quarto pela primeira vez em dias. O navio era como ela lembrava, sua memória não estava tão ruim assim. Eles desfilaram pela tripulação. A guerreira viu a curandeira de olhos violetas, viu o homem careca que havia ajudado Glenn e também viu Kaelin, a mulher de cabelos vermelhos que tentou a atacar. Assim que seus olhos cruzaram com Kaelin, a guerreira pode ver o medo no rosto da mulher. Era óbvio que todos haviam percebido a mudança da cor dos seus olhos. Mas, ninguém fez nada. Ninguém se importou. Na verdade, houve comemoração. Glenn subiu no seu palanque de mãos dadas com ela e começou a dar o seu discurso. Ele era bom, sabia manipular as massas, sabia o que precisava ser dito para que agradasse. Aquelas pessoas queriam salvação de um mundo cheio de sofrimentos e ele prometia o paraíso. Prometia dinheiro, riquezas, a volta dos entes mortos, a casa que sempre sonharam, a mulher dos sonhos. Coisas mundanas, mas, que era o desejo de muitos. Ele realmente trazia esperança. Porém, uma esperança falsa. Nada do que ele prometia, poderia ser cumprido. Nada daquilo era real. Allyria ficou preocupada, a ignorância e a ingenuidade os levariam ao caos. Eles o seguiam fielmente, o seguiam cegamente. Aquilo era uma fé cega. Assim que Glenn terminou seu discurso manipulador, no céu as estrelas começaram a cair. Era uma coisa muito bonita perto daquela mal que estava vivendo. Aquilo era o festival da Deusa Valian, a deusa do futuro e a sustentadora do tempo. Allyria rezou por um futuro melhor, por que o presente era desesperador. 

As três chaves de Ecco - O guerreiro e o escolhidoOnde histórias criam vida. Descubra agora