Capítulo 20

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Naquele dia eu fiquei em casa, circulando sem rumo pela solidão do rancho. Mauro havia saído outra vez, dizendo que voltaria antes do almoço. Fiquei olhando dona Cida cozinhar. Ela pegava a linguiça de porco no varal, que ficava em cima do fogão à lenha, tirando bons pedaços dela para fritar e colocar no feijão. Era a melhor linguiça que eu já tinha experimentado, montada por mãos caprichosas de uma mineira habilidosa, usando ervas de horta e tripa de porco.

Dona Cida estava ao lado do fogão de lenha quando entrei na cozinha. Havia pegado araticum-vermelho, um tipo de fruto de casca áspera que eu nunca tinha visto. Ela raspou o interior de vários deles, socou em um pilão e fez um caldo avermelhado. Refogou com sal e alho na panela de ferro, sempre abanando o calor do rosto e rearranjando a lenha na boca do fogão para que a cozinha não ficasse cheia de fumaça. Uma grande panela de macarrão cozinhava mais atrás.

— Está com fome, dotor Rômulo? — Ela me olhou com o mesmo olhar tranquilo de Rosa, mas sem tanto recato. Havia passado da idade disso.

— Não muito, dona Cida, mas o cheiro está bom.

Realmente estava, mas meu estômago embrulhava por não conseguir parar de pensar no homem que havia matado e no incesto que tinha descoberto naquela pensão. Também não conseguia parar de pensar em tudo que meu irmão havia dito. 

— Ah, mas o senhor vai gostar da comidinha de hoje, aguarde só. — Disse ela — Já que é meu último dia, vou fazer algo especial.

— Último? — Estranhei — Tá dizendo isso por quê?

— Ah, pedi pra Rosa vir pra cá, dotor, se não se incomoda. Eu vou trabaiá no lugar dela na fazenda do Juca.

Planos arruinados. Mauro ficaria uma fera quando soubesse.

— Ela desistiu?

— Não, dotor, eu é que não quero que ela vai. Melhor nem falar dessas coisa.

Assim que terminou tudo, a velha senhora misturou o caldo de araticum-vermelho com o macarrão que tinha deixado escorrendo. Me serviu um prato grande daquele macarrão tingido de vermelho, junto do feijão preto com linguiça de porco caipira.

O cheiro daquela comida me fez salivar como um cão faminto e nem me lembrei mais dos antigos pensamentos que estavam repelindo minha fome. Repeti duas vezes, sem contar para dona Cida que era a primeira vez na minha vida que eu comia macarronada. Que diacho de troço bom!

— Que cheirinho maravilhoso, minha senhora! — Mauro entrou, arrancando um grande sorriso de dona Cida. Ela e os filhos gostavam bem mais dele do que de mim.

— Senta aí, menino, que vou te servir! 

— Agradecido. — Mauro sentou à minha frente e eu me levantei na mesma hora.

— A comida estava ótima, dona Cida. — Agradeci e peguei meu chapéu pendurado na parede — Se me dão licença, vou dar uma volta.

Senti que os olhos do meu irmão estavam sobre mim enquanto eu saía. Ele gostava de me intimidar, de me fazer sentir que, como irmão mais velho, era sempre o que estava no comando da situação. Infelizmente, eu havia cedido à ele esse lugar por muitos anos e não conseguia mais tirá-lo do posto.

Não gostava de cansar a Imperatriz, mas naquele dia peguei a égua e percorri as estradas à galope. Precisava sentir o vento fresco na pele, precisava dos solavancos do animal e da sensação de estar na natureza.

Cavalguei um tempo incontável, vendo os trabalhadores derriçando café nas lavouras, vendo os pescadores nos rios e as crianças, com seus cadernos dentro de sacolas de arroz, voltando da escolinha da região. Cavalguei até que encontrei algo estranho à certa distância, debaixo de uma moita de bambus.

a Flor e o VentoOnde histórias criam vida. Descubra agora